angel 4277901 960 720 - Victória O'Brien e o Saltério dos Mortos - Cap. 1

14/01/2021

Capítulo um

O pressentimento

Era cinco para o meio dia e eu já estava de saco cheio de tudo aquilo: fórmulas matemáticas? Quem precisa disso? Queria que o sinal tocasse logo e acabasse com toda aquela chateação! Olhei para a janela da sala de aula e vi pela borda retangular uma folha cair. Um pombo nesse momento alçou voo do outro lado do pátio. Queria ter essa liberdade.

— Victória, qual é a raiz dessa equação? – Meu professor perguntou.

Devo ter feito cara de paisagem e isso devia ser engraçado, pois até João o cara mais sério do primeiro ano do ensino médio da Escola Estadual José Bonifácio de Andrada e Silva, riu. Minha vontade era esmurrar ele por rir de mim, mas ele é tão gatinho que deixei para lá.

— Escute, você não pode simplesmente achar que pode passar a aula inteira olhando para uma janela. Ei… guarde já esse celular mocinha! ­– O professor continuou.

Não estava mais dando a mínima para disfarçar e fingir interesse. Preferia ficar de boa em uma rede social do que ouvir o tiozinho me dar um sermão.

Trimmmm

Tocou o sinal! Fui salva pelo gongo todos os vinte alunos da sala se levantaram e não esperaram o professor de matemática de meia idade – Zé Augusto – terminar de me dar esporro. Me levantei e saí acompanhada de minhas duas BFFs (best friends forever) Thaís e Julia. Thaís era morena de olhos castanho escuros como amêndoas. Seus cabelos eram bem compridos chegando a sua cintura! Eram lisos e bem brilhantes. Ela parecia uma índia.

Já Julia era loira com cabelo repicado, olhos cor de mel e uma boca estilo a de um curinga. Sério eu zoava muito ela por isso. Elas e eu estávamos vestidas iguais: sapatilha preta, meia branca até o joelho, saia azul marinho e camisa social branca de meia manga. Sim estudávamos em um colégio de normalistas! Isso tudo não fazia muito o meu estilo, mas fazer o que né? Não tive como opinar sobre isso. Minha mãe decidiu e estava decidido.

Eu era rebelde, mas nem tanto assim ao ponto de contrariar ela. Pelo menos não quanto a isso.

— A propósito a resposta é 4.

— Victória O’Brien, se você levasse o ensino médio a sério seria a primeira da turma.   — Meu professor respondeu.

Ele era um homem de meia idade com cabelos grisalhos, lisos e cortados curtos. Baixinho, barrigudo, tinha uma careca de frei e um nariz pontudo. Ele usava uma camiseta polo verde, jeans e sapato. Respondi sem pestanejar:

— Professor, se o senhor levasse sua aparência a sério provavelmente teria uma namorada. Hashtag fica a dica.

Pisquei meu olho esquerdo e saí com a minha mochila azul Tiffany a tira colo. Eu tinha olhos verdes bem claros. Minha mãe sempre dizia que ambos eram como um par de esmeraldas.

— Um dia vai dar valor a isso, Victória. — Ele respondeu.

Deixei ele e segui pelo corredor que dava para o portão da escola.

Além de olhos verdes minha pele era branca e meu rosto tinha algumas sardas. É tinha gente na do primeiro ano que falava que minha pele era enferrujada. Aí eu dizia que ia bater em todos que me chamavam assim e o apelido acabou não pegando. Sempre fui meio esquentadinha para falar a verdade. Meu cabelo era longo mais não tanto quanto o de Thaís. Ele ainda era ruivo bem alaranjado como se fosse feito de fios de cobre. Eu também tinha uma franja que me cobria a testa. De corpo era magra. Não tinha um corpão sexy mais estava feliz assim. Era baixinha com 1m57cm com um rosto fino, delgado e um nariz afilado.

Meu nome: Victória Del Valle O’Brien, carioca filha do fruto do amor de um irlandês com uma gaúcha de Santa Catarina. Bem, na verdade, não queria entrar nesse assunto, mas confesso que é até melhor porque tudo o que vou falar daqui para frente é bem… complicado. Pairando o bizarro, portanto recomendo que pare de ler aqui.

Não parou? Acha que pode aguentar o que está por vir? Tudo bem.

Ao sair da sala o assunto começou e foi Julia que disse:

— Uma menina, chamada Giovana, também sumiu. Dizem que ela estava no segundo ano. — Julia parecia meio aflita como se o assunto fosse pesado demais para aquela tarde alegre de sexta.

Sério, aula de matemática sexta-feira? Fala sério isso é tipo horrível, mas não vem ao caso o que importa é que Thaís disse:

— Pare, essa história me dá arrepios.

— Que história? — Eu estava boiando.

— Há três semanas atrás, Jefferson, um garoto do segundo ano, achou um osso perto do portão. A princípio usou ele para assustar as garotas da sua sala. Ele dizia que era um osso humano e que a escola devia ser um cemitério em outros tempos.  — Disse Julia.

Eu franzi o cenho e comentei:

— Isso é tão clichê não acha?

— Eu não terminei, Victória. Um certo dia Jefferson faltou à aula, mas ele nunca havia faltado antes. Todos ficaram preocupados. Mandavam mensagem no perfil dele na internet e nada. No aplicativo de mensagens no smartphone ele não respondia.  Foi assim o dia todo até que na hora da saída resolveram ligar para a mãe dele. Chamou até cair e seus colegas foram até a sua casa. Ele morava aqui perto, contudo para a surpresa de todos não havia ninguém no velho sobrado em que ele morava. O lugar tinha três andares e ele morava no terceiro. Nem mesmo os dois outros tinham pessoas. As portas estavam simplesmente abertas e ninguém dentro só os móveis.

— Sério? — Thaís indagou.

— Sim, e ficou pior, Thaís. — Julia respondeu e continuou:

— Logo toda a semana sumia um amigo próximo de Jefferson na sala. Depois uma pessoa passou a sumir aleatoriamente na escola. Ninguém notou de início, contudo agora muitos já dizem que a escola está amaldiçoada.

Gelei! Isso era bem estranho só que não podia simplesmente dizer que aquilo havia me abalado então perguntei:

— A última a sumir foi a Giovana, certo?

— Sim.

Papinho estranho esse, mas com toda a certeza era só uma lenda urbana. Nada que pudesse ameaçar a paz e a tranquilidade do meu dia-a-dia de adolescente de quinze anos, Aluna do primeiro ano do ensino médio naquele belo mês de março. E o mais importante: era sexta-feira! A primeira de março! A curtição iria começar!

Passamos pelo portão gradeado e saímos da escola. Eu me despedi de minhas amigas e fui em direção ao ponto de ônibus. O colégio ficava no centro da cidade já a minha casa na Zona Norte. Eu morava em uma casa simples em uma vila na subida do Morro do Coelho. Engraçado é que a minha comunidade não tinha nada a ver com o morro do coelho, ponto turístico de Poxoréo em Mato Grosso, mas a bem da verdade devo confessar que já estava ficando bolada com aquele lugar aonde eu morava.

Quer dizer as pessoas eram boas, no entanto ontem mesmo um homem foi vítima de uma bala perdida. Isso é triste, pois não sei… acho que ninguém deveria ter um fim desses.

O tempo estava cinza, nublado e até um pouco frio o que era novidade aqui no Rio. Começou a chuviscar. Estava no fim da Rua general Caldwell cruzando a esquina para a Av. Presidente Vargas quando uma sensação estranha me envolveu. Senti meu coração apertado como se algo de ruim fosse acontecer. Não sei porquê, mas peguei meu celular e liguei para minha mãe. Chamou e ela não atendeu.

Céus, pensei: o que está havendo comigo? Isso não é nada demais! Ela deve estar bem! Não deve estar acontecendo nada. Atravessei correndo a Presidente Vargas e cheguei do outro lado da pista com os carros fazendo zuummmm as minhas costas quando atravessei a última pista. Queria atravessar logo. Não recomendo isso, mas no meu caso bem… eu sou vida louca mesmo!

Um motorista me xingou e eu retribui a gentileza.

Sério, eu precisava me conter mais.

Peguei o ônibus e entrei por trás mostrando a declaração de que eu era estudante para a câmera. Na boa, por que aqueles cartões de gratuidade demoravam tanto para ficarem prontos?

Liguei o celular mais dessa vez para ouvir música enquanto não chegava em casa. Estava torcendo para algum cracudo tentar pegar ele de mim pela janela para ele ver se eu não ia voar atrás dele pela mesma janela. Manchete do dia: garota doida pula janela e corre atrás de ladrão de celular pela Central do Brasil.

Minha comunidade até que era bonita cheia de casinhas de tijolos, muitas delas coloridas nas mais diversas cores: amarelo, azul, rosa e até laranja! Não; eu não morava em nenhuma delas lá no alto do morro, porém apesar da escalada ser árdua eu queria morar lá em cima. A vista devia ser linda e poderia ver todo o bairro. Já fora lá algumas vezes em bailes funk apesar da minha mãe achar que eu estava dormindo. Um dia, contudo, ela me pegou saindo e foi tenso. Hoje tinha baile, pois era sexta e eu queria muito ir, mas ela nunca mais deixou. Aliás ela nunca havia deixado eu é que na rebeldia ia.

Só não podia fazer isso de novo porque minha mãe estava adoentada. Era só uma gripe (ou resfriado nunca soube a diferença não sei por que duas doenças têm que ser tão parecidas! Da raiva as vezes isso!), todavia achava melhor me comportar como a filha que ela queria. No início ela apresentou febre e eu morri de medo de ser dengue, Zica ou aquele troço que eu não sei falar o nome chica alguma coisa.

Sério por que ninguém faz nada a respeito disso? Custa tirar a droga da água dos pratinhos das plantas?! Será que a mão de alguém vai cair se for esvaziar o pneu do carro que ficou largado no quintal?! E a faxina?! Ninguém faz para ver se tem algum resquício de água sabe-se Deus aonde!? Isso era o cúmulo do absurdo: ninguém se preocupar com uma doença tão medonha quanto esta. Mês passado a filha da Dona Auxiliadora, vizinha minha, pegou esse troço.

Enfim nunca falei isso com ela, mas me preocupava muito com a minha mãe. Desci do ônibus estranhando o fato dele ter mudado de percurso. Em vez de ir por dentro foi por fora do bairro. Ao descer alguém me alertou:

 — Cuidado mocinha está tendo uma operação aí no bairro.

Operação?! Gelei e não foi de frio! O meu pressentimento! De alguma forma eu sabia que algo estava errado! Pulei do ônibus e saí correndo igual uma louca para a direção da minha casa. Consegui ouvir o motorista falar se abaixa! Antes de arrancar com o carro. Então tudo aconteceu muito rápido. Tiros cortaram os céus com o barulho das rajadas sobrepujando o do trânsito.

Eu estava em uma rua de passagem com alguns carros correndo na direção oposta tentando não avançar mais e retrocedendo. Eu me joguei no chão da calçada e as pessoas que estavam no ponto de ônibus fizeram o mesmo. Reparei que todo o comércio da região como botequins, pastelarias e o mercadinho estavam fechados. Na loja de materiais de construção um funcionário terminava de se trancar lá dentro.

Pelo visto o tiroteio havia estourado agora no meio do dia sem mais nem menos e interrompendo a rotina de todos. Pensei em minha mãe. Éramos só nós duas a catorze anos. Meu pai falecera quando eu tinha um ano. Foi aí que ela decidiu vir para cá: a comunidade do coelho. Não tínhamos dinheiro para bancar um lugar melhor. Minha mãe era auxiliar de serviços gerais e não me deixava arrumar um estágio. Falava que eu ainda era muito imatura. Queria estagiar e ver se a gente saia daqui.

De tempos em tempos coisas desse tipo aconteciam e eu sempre me assustava de verdade. O quê eu faria? O recomendado era sempre ficar abaixada e esperar. O chão era sujo e poeirento, áspero arranhava minha pele, mas isso ainda era muito melhor do que ser alvejada. Ao olhar para o lado vi outras pessoas que assim como eu estavam assustadas, em pânico e sem esperanças. Já tiroteio, continuava.

Tei-tei-tei-tei.

O que era aquilo? Uma arma com um calibre mais pesado?! Minha mãe estava de folga hoje, me lembrei. Será que ela estava aqui embaixo ou encurralada ladeira acima? Queria estar com ela, abraçando-a, sentindo seu cheiro e me aconchegando em seus braços. Me sentiria mais segura, contudo apesar de precisar dela e se agora fosse o contrário? E se ela estivesse em casa se preocupando comigo? Tentei ligar, contudo ela não atendia. Foi então que notei o poste telefônico pipocando espalhando faíscas para todo o lado. Ele foi atingido por um tiro! O chiado que ele fez era forte.

E se me minha mãe também foi alvejada em nossa casa e precisasse de ajuda? Fui tomada por um turbilhão de pensamentos. Não podia ficar ali parada com medo. Precisava saber se minha mãe estava bem! Meu objetivo era claro: voltar para casa. Enfrentei o tiroteio e saí correndo abaixada em direção a ladeira em que morávamos.

Ouvi uma explosão e me abaixei mais. O que era aquilo? Deus, era uma granada? Nunca soube, mas continuei até que o impensável aconteceu! Parei de correr abruptamente com a saraivada de tiros ainda a se fazer ouvir. Pulei e fui parar atrás de uma caçamba de lixo com as chamas lambeando a ladeira em que eu morava. Só vi o vermelho alaranjado de uma torrente de fogo a queimar indistinta e logo depois veio o boom. A fumaça negra dificultava a visão. Meus olhos ardiam. Me encolhi e percebi com horror que haviam posto fogo em um ônibus.

Foto: Pixabay