abandoned 3136813 960 720 - Victória O’Brien e o Saltério dos Mortos – Cap. 4
04/02/2021

Capítulo quatro

O treinamento

Fomos ao hospital. Ele ficava na Barra da Tijuca. Fiquei preocupada, pois não tínhamos dinheiro para pagar um lugar como aquele (minha mãe e eu). Era majestoso e hi-tech. O máximo que podíamos fazer era esperar o serviço público de saúde. Como todos os outros brasileiros e rezar para que ela não morresse até que encontrássemos vaga em algum lugar que não estivesse superlotado ou sem recursos para atender as pessoas. Graças ao roubo descarado de um grupo de governantes que a cada dia ficava pior e pior. Nos Jornais tudo o que se via era isso: corrupção, roubos, violência e crimes de colarinho branco. Contudo Seu Apolônio disse para eu não me preocupar, pois ele estava custeando tudo. Quando entrei no quarto não aguentei vê-la. Era tortuoso demais.

Eu tinha tantas lembranças boas com ela. Queria ter tido mais tempo. Queria que ela não estivesse assim nessa situação. E o pior: queria ter sido uma filha melhor. Mais obediente e estudiosa. Menos rebelde. É incrível o fato de não nos importarmos com nossos pais. Achamos que eles são tiranos que querem impor suas vontades. Com isso nos desligamos deles achando que de qualquer forma eles são eternos e quando vemos… eles não são e tudo já acabou. Era um fardo que eu não queria carregar, contudo eu ainda tinha um fio de esperança. Isso me motivava. Era o fato inexorável de que ela poderia acordar um dia.

Com isso em mente voltei para o Humaitá e comecei o treinamento. Psiônica – como Seu Apolônio já tinha dito – era o nome do estudo do uso da mente para a produção de fenômenos paranormais – usando a Psi, a energia psíquica da Vida, para alimentar nossas técnicas. Este estudo podia ser usado para aperfeiçoar os paranormais como uma arte marcial ou usada para fins escusos e para a criação de bruxarias. Mas eu não era uma bruxa e sim uma paranormal por tanto assim como todos os paranormais aprenderia a controlar meus dons.

Os dias se passaram, três, quatro, cinco, uma semana e depois duas. Seu Apolônio e Alanis me tratavam super bem. Apesar de eu sentir uma pontinha de raiva no olhar de Alanis. Acho que ela me achava uma louca raivosa por ter posto fogo naquele quarto. Não posso culpá-la. Acho que eu sentiria a mesma coisa no lugar dela.

Eu visitava minha mãe todos os dias e me esforçava para cumprir a promessa que eu fiz a ela de obedecer meu tutor. O médico continuava a pesquisar uma forma de reverter o quadro dela mais sem sucesso. Dizem que uma pessoa pode ficar até mesmo anos em coma. Essa ideia me torturava. Eu estava ferida, magoada e não fui para a escola nessas duas semanas. O fato era que eu não dormia bem. Acordava com qualquer barulho e as vezes ainda relembrava aquela noite em que tudo aconteceu.

O meu guardião legal não me forçou a retornar tão cedo para a escola. Conversou com a direção e explicou o que tinha acontecido com minha mãe (o coma misterioso o resto foi ocultado afinal ninguém acreditaria mesmo). Assim ele respeitou minha vontade, mas os deveres de casa e toda a matéria ele mesmo pegava e eu estudava (apesar de ainda achar tudo muito chato e a matemática horrível).

Nos primeiros dias eu só queria mesmo era ficar quietinha no meu quarto. Nem descer para comer eu descia. Uma noite inclusive enquanto eu dormia liberei minha cinese ao sonhar com a fatídica noite em que fomos atacadas. Como eu disse eu ainda revivia este momento cruel. Felizmente ninguém se machucou. Só a cama que pegou fogo. Seu Apolônio entrou desesperado com um extintor nas mãos, apagou as chamas e eu descobri que o fogo não me machucava. Seu Apolônio me disse que na qualidade de pyrocinética eu tinha imunidade ao fogo.

 Os quartos eram cinco, conforme dito. Um do Seu Apolônio, outro de Alanis e um meu. Os outros dois eram de hóspedes. A casa ainda tinha uma ampla sala de estar, copa, cozinha, e a garagem. E um grande jardim nos fundos (com uma estufa). Eu tinha todo o conforto naquele lugar. Muito mais do que eu já sonhara um dia ter. O pai de Apolônio tinha deixado uma herança considerável ao que parecia para ele, seu filho único. Assim sua casa era bem abastada.

De dia Seu Apolônio trabalhava na Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. Ele era funcionário público. A noite cuidava da filha e de mim (que para ele também me tornara filha). Era estranho isso para mim porque eu nunca conheci meu pai e nunca soube o que era de fato ter uma figura paterna, mas tudo bem.

E a vida seguiu seu rumo. Eu cada dia mais triste e não muito conformada com o que acontecera a minha mãe. Bem todos os dias eu chorava e me torturava com mais culpa. Me fazia perguntas como “Por que ela estava assim? ”; “Por que tiraram ela de mim? ” Eu fiquei presa na minha dor. Afogada em lágrimas e com um grande desespero que me tirava as esperanças.

Uma certa noite, porém, Seu Apolônio me pegou em um desses momentos de crise. Eu sempre fechava a porta do quarto e não saia muito. Quando o fazia tentava simular uma certa resignação. Ele sabia que era algo artificial. Mesmo me conhecendo pouco o homem conseguia me ler como um livro. Era mais sábio do que eu imaginava. Ele então me disse ao me pegar desprevenida chorando: “Victória você sabe como eu superei a minha perda? ” Eu respondi sem pestanejar: “ Eu não tô afim de sermão tio”.

Eu estava na varanda e a minha frente tinha uma grande árvore, (o carvalho daquela noite) olhei para ele lembrando que minha mãe gostava muito de jardinagem. Uma folha caiu e notei como a vida podia ser frágil. Não aceitava isso, mas era um fato inexorável. Seu Apolônio então disse:

— Eu entendo a sua dor.

Nessa hora ao ouvir aquilo fiquei com raiva. Raiva de tudo e ataquei-o com palavras duras:

— O que você entende? Nada! Nada!

Ele ficou em silêncio e em seu rosto lágrimas surgiram. Continuei em fúria:

— Por que não fala nada? Droga! — Eu estava perdida, não sabia mais o que fazer ou dizer. Tudo aquilo doía muito mais que qualquer outra coisa que eu havia passado. Olhei para o pobre homem e mesmo com muita raiva vi que estava maltratando ele.

Descontando tudo nele. Enquanto ele nada fazia se não expressar sua dor de me ver naquele estado. Me senti péssima. Estava magoada, ferida, mas isso não me dava o direito de ser má. Minha mãe não havia me educado daquele jeito. Eu disse então:

— Escute eu agradeço por ter tirado minha mãe e eu daquela casa em chamas e por tudo o que tem feito por ela e por mim até agora, mas não posso simplesmente parar e fingir que nada está acontecendo!

— Meu pai foi morto na minha frente. Um homem armado abordou nosso carro pedindo dinheiro e meu pai achou que poderia fugir. Acelerou o carro e o meliante atirou nele. Sei que está com raiva e sei que ser privada do convívio com sua mãe doí muito, mas posso ajudá-la e vou. Prometi isso a sua mãe.

Fiquei surpresa. A gente nunca imagina que outras pessoas podem sofrer tanto quanto a gente. Eu não imaginava que ele perdera alguém.

— Já faz muito tempo? — Perguntei.

— Trinta anos.

— Por quê? Por que isso aconteceu com você? Por que isso está acontecendo comigo? Por que justo com a minha mãe?

Chorei e ele me abraçou.

Ficamos ali parados por um longo tempo. Ele se sentou ao meu lado e nada mais fizemos. Eu não sei como, mas um entendimento aconteceu ali. Sem palavras apenas no silêncio. Passei a respeitá-lo mais. E disse para mim mesma que deveria tratar ele com mais educação dali em diante. E ele continuou:

“Mude o foco das perguntas”. Queria falar para ele se ferrar, pois não entendi essa de mudar o foco (pelo menos naquela hora), contudo aquilo me surpreendeu e ele continuou: “Coisas ruins podem acontecer com qualquer um. Até mesmo com você. Não se faça perguntas cujas as respostas você não tem. Mude o foco desses porquês que eu sei que você se faz e faça perguntas certas. Victória eu entendo a sua dor, mas você nem eu, por exemplo somos melhores do que qualquer outra pessoa. Nós sofremos como todos”.

Foi um choque de realidade. Eu estava me vitimando. Ainda perplexa nada disse e ele continuou a me abraçar e me alimentar com afeto e esperança. Eu me senti segura pela primeira vez desde que perdi minha mãe para aquele coma e agora eu sabia como era ter um pai. Chorei ainda mais. Não gostava de chorar na frente de ninguém, contudo naquele momento eu me permiti fazer isso.

Os outros dias não foram fáceis, entretanto o que o velho homem me dissera naquela noite não saiu mais da minha cabeça. Foi difícil, mas eu tomei uma decisão: me permitir ser feliz de novo. Mudei o foco como ele havia me dito e funcionou. Não como mágica levou um certo tempo mais as coisas foram se ajeitando. Eu fiz uma nova amiga: Paola.

Quem é Paola? Bem ela é uma garota de treze anos, loira, com olhos azuis. Ela tem uma franja na testa e tem longos cabelos que vão até depois do pescoço. É filha do médico que atendeu minha mãe naquela fatídica noite e mora na casa ao lado com o pai. O médico é nosso vizinho. Sua filha é muito doce e gentil.

E mais: a casa de Seu Apolônio em certos aspectos foge do senso comum de normalidade. Nela havia uma árvore cerejeira em que brotavam bombons como frutos no jardim. E uma plantação de narcisos do mar, flores azuis que recuperavam Psi, matérias primas de poções feitas para revitalizar sensitivos.

Isso era fruto da forte circulação de Psi ao redor do terreno aonde a casa fora construída. Seu Apolônio me contara isso: a casa não fora feita ali por acaso. Até mesmo o fato dela ser construída com madeira tinha um significado. A madeira fazia com que a Psi circulasse de forma mais livre nas edificações.

Ainda no jardim tinha uma grande estufa que só Seu Apolônio tinha permissão para entrar. Não perguntei o porquê mais tive muita vontade de ir lá, contudo acabei não indo (ainda). No fim das contas eu nunca fui muito boa em respeitar regras. Já na garagem da casa não tinha nada demais. Só um aquário com um peixe sem graça chamado Kun.

Acho que ele era chinês? Ou japonês, não sei Alanis me contou, mas não prestei muita atenção. O mais legal era o que se encontrava no alto de um grande ipê amarelo nos fundos da casa quase colado no muro do vizinho. Um passarinho de uma beleza ímpar, todo branco, com penas brilhantes! Elas emitiam uma luz prateada. Seu bico também era branco e os olhos de uma inocência e doçura como eu nunca vi antes. Olhinhos leitosos.

Ele voava em círculos dia e noite sem parar e sem pousar. Era parecido com uma andorinha e ninguém conseguia ver suas patinhas porque eram cobertas por tufos de penas. Seu Apolônio disse que o passarinho era um ser místico: merleta. Me disse que muitos escudos e brasões da idade média usavam o desenho dele para simbolizar a sorte e a busca constante do homem pela sabedoria. Isso, pois o fato dele nunca pousar simbolizava justamente isso. Muitas instituições de ensino inclusive usavam a merleta como símbolo pela sua ligação com a sabedoria.

A ave havia chegado até aquela casa quando o avô do Seu Apolônio era criança. A casa era herança e passou do avô para o pai do Seu Apolônio e agora a propriedade era dele. A sua família “Os Oliveiras” eram uma família de paranormais. E ele Apolônio Nestor Oliveira era um homem dedicado a perpetuar os ensinamentos psíquicos para os outros.

Fiquei sabendo inclusive que ele tem um aluno além de Alanis e agora de mim. O garoto se chama Bernardo. O senhor não cobra pelas aulas. Ensina tudo de graça aos sábados quando está de folga. Bernardo não apareceu nos últimos dias, pois estava ocupado com os deveres da escola segundo Alanis. Meu treinamento nesses últimos dias fora puramente teórico e li muitos livros e aprendi coisas surreais. O mundo dos mortos existe e todos os espíritos vão para lá quando desencarnam.

Esse mundo é conhecido pelos paranormais como Mundo Espiritual. Com diversos planos que seriam uma espécie de “divisões” aonde vivem espíritos, anjos, demônios, monstros e seres do nosso folclore. Muitos servem o Mal como os Kelpies, cadáveres de cavalos que afogam suas vítimas e as devoram vivas. Ou os Dybbuk espíritos “quebrados” que procuram os bondosos para tentar possuir seus corpos e viver de novo. Não tem forma física e acabam atormentando suas vítimas fazendo-as cometer atos de loucura extrema.

Mais há também seres de luz que trazem consigo o amor, o respeito e a bondade. Espíritos muito evoluídos que ajudam os mais necessitados e também os fazem evoluir como pessoas. Basicamente o Mundo Espiritual é dividido em Céu, Purgatório e Inferno. Portanto essa parte não é muito diferente da que todos conhecem. Todos que tem alguma religião é claro. Não importa qual seja.

Todo esse estudo de certa forma me ajudou a esquecer um pouco a minha dor. Seu Apolônio não estava brincando. Eu havia entrado em um novo mundo. Apesar de ter quase pirado no início tudo aquilo no fim se mostrou muito legal. Saber que seres fantásticos e coisas incríveis estavam todo esse tempo ao meu alcance era algo mágico e único.

Descobrir que o nosso mundo era tão divertido e que no fim o mundo espiritual de fato existia e coexistia em perfeita harmonia com o nosso era sensacional. Isso me ajudou a tentar superar tudo também e acho que no final das contas eu acabei conseguindo. Conhecer toda aquela realidade nova acabou me fazendo bem. Era bom saber que eu podia sonhar novamente.

Bem foi isso que seu deu nessas últimas duas semanas. Agora era sábado novamente e Seu Apolônio disse que meu treinamento prático iria começar hoje se estivesse tudo bem para mim. E estava. Fomos para os fundos Alanis, ele e eu. Havia um grande quintal ali atrás com o piso gramado, um bom espaço aberto e uma fonte branca de mármore com a estátua de uma mulher usando uma túnica grega.

Ela estava agachada e segurava nos braços uma urna que saia água para a fonte. Como eu não notara essa fonte antes? O barulho da água jorrando era audível. Ouvi também o gorjeio de pássaros que passaram voando pelo céu. Podia sentir o cheiro da terra daquele quintal. Peguei um bombom da cerejeira e comi. Era uma bela manhã ensolarada e muito quente. Seu Apolônio começou:

 — Victória seu grande problema é não conseguir controlar bem seus sentimentos. Isso atrapalha na sua concentração. Sem concentração você não pode criar e manipular o fogo. Escute este é um elemento forte. O fogo traz vida, mas se não for controlado pode trazer a morte também.

Enquanto ele falava me lembrei dos incêndios que eu provocara. Era verdade, eu era muito dispersa e impulsiva. Regida pelos sentimentos. Fosse alegria ou raiva, mas jamais pensei que isso seria um problema. Ele se posicionou na minha frente e Alanis foi buscar um… extintor?

— Victória tente criar fogo novamente. — Ele disse.

— Cara, como eu posso fazer isso? — Perguntei agora confusa.

— Tente se lembrar da sensação que teve nas vezes em que as chamas surgiram.

— Sei lá! Eu estava assustada com aquelas criaturas. Depois fiquei com raiva, frustrada por não poder ajudar minha… mãe. Estava muito abalada! Não dá para saber! — Me irritei. Não queria lembrar daquelas coisas.

— Exato! Sentimentos fortes como medo, raiva podem ser gatilhos para acender literalmente suas mãos. Sua cinese. Uma relação de causa e efeito. A questão aqui é: você não pode usar somente estes sentimentos fortes. Tem que achar um jeito de usar seus poderes sem machucar ninguém, pois a cada vez que você fica com muita raiva, por exemplo, suas chamas vem com muita força. Imagine que toda vez que se irritar com algo você pega fogo. Isso não pode acontecer.

— Olha só “professor” dá para ir direto para a parte em que eu controlo meus poderes?

— Tempo, paciência e treino. Você não pode esperar controlar isso da noite para o dia. Alanis levou meses. O início é problemático assim mesmo. O sensitivo ainda está se descobrindo.

— A não brinca? Se descobrindo? Não vai me dizer que agora vai começar a falar de puberdade também? — O homem ficou envergonhado e dessa vez até Alanis deixou escapar um risinho.

— Victória veja bem. Tente se concentrar. Esvazie a sua mente. Ouça o barulho da fonte, veja as folhas das árvores que balançam conforme a brisa. Procure ouvir o canto dos pássaros que passam por aqui voando. Tente se enxergar como parte disso. Parte de um grande organismo vivo.

Tentei, juro que tentei, mas toda essa conversa Zen estava me deixando ainda mais agitada. Já ouvira esses sons de água e pássaros e etc… Só que não conseguia me concentrar!

— Escuta isso não funciona comigo. Puxa achei que como eu era uma paranormal iria entortar umas colheres e tal e não ficar aqui bancando a otária que ouve os passarinhos.

— Nossa você não tem jeito mesmo. — Disse Alanis me fuzilando com o olhar. Ela continuou:

— Ele está tentando te ensinar a ter concentração. Primeiro você se concentra depois você aprende a ter controle e por fim domina a cinese.

— Escuta aqui o sabichona eu não te pedi o conteúdo programático do curso! — Me enfureci e ao olhar para minhas mãos vi as chamas despertarem.

— Aí caramba! — Comecei a sacudir as mãos freneticamente e o fogo apagou.

— Viu eu te ajudei!

— Ajudou? Se quer mesmo me ajudar poderia me ensinar a usar um extintor de incêndio!

— Nunca.

— Alanis, por favor. — Disse Seu Apolônio.

Alanis ficou sem graça e o senhor comentou:

— Bem ao que parece o gatilho é a raiva, mas não podemos seguir com isso. Veja bem eu até entendo que você não seja do tipo calma e tranquila então talvez se concentrar em coisas como o canto dos pássaros ou a natureza possa não funcionar.

— Legal, e o que eu faço?

— Veja bem, Victória para ser bem franco pyrocinéticos não são comuns. Ao contrário são extremamente raros. Você é a primeira que eu treino, contudo sei de algo que pode funcionar. Tente se lembrar de sua mãe. Concentre-se nisso. Em uma lembrança boa que você viveu com ela.

Enquanto dizia isso Seu Apolônio pendurou um alvo desses de dardo de plástico na cerejeira de bombons (da onde ele tinha tirado isso?) e continuou:

— Tente se concentrar nisso para criar fogo e então mire no alvo e Alanis – Ele olhou para a garota – não provoque ela.

Alanis fez uma careta e eu disse:

— Não vou conseguir. — Estava insegura e completei:

— Vou acabar queimando sua árvore de bombons.

— Nossa árvore Victória, mas não se atenha a isso. A Psi flui nessa árvore de forma muito latente. Se a árvore se queimar pode se regenerar graças a isso. Além do mais eu confio em você! Sei que é mais do que capaz de fazer isso.

Nossas aquelas palavras eram belas. Nunca ninguém acreditou em mim daquela forma. Só mesmo minha mãe. Lembrar dela ainda doía, todavia, não lembrar era pior. Eu não podia fazer de conta que ela não existia. Não podia fazer de conta que nada tinha acontecido. Talvez eu só pude viver bem nessas duas semanas após a conversa com Seu Apolônio porque tentei afastar as lembranças. Mais uma coisa é mudar o foco dos seus problemas. Outra é fingir que eles não existem. Acho que acabei fazendo isso na minha tentativa de superação.

Então basicamente para superar meu trauma eu mudei o foco das coisas ruins – como Seu Apolônio havia dito – e nesse processo acabei por me forçar a esquecer as coisas boas que eu vivera com minha mãe. Nessa hora então percebi que também não era obrigada a esquecer nada para ficar bem comigo mesma. Desta forma eu mudei o foco e procurei aceitar o que aconteceu. Não foi culpa minha, não foi culpa de ninguém o que aconteceu com minha mãe. E agora me lembrar dela já não doía tanto.

Lágrimas se esvaíram de meus olhos correndo livres por meu rosto enquanto eu fechava os olhos e me lembrava do dia em que fui passear no shopping com minha mãe pela primeira vez quando eu era bem pequena. Tomamos sorvete de casquinha e fomos ao cinema assistir a Bela e a Fera. Eu estava tão feliz nesse dia. Felicidade. Minhas lágrimas eram de felicidade. As chamas então irromperam a pele de minhas mãos, mas carregadas de um sentimento de satisfação. Energizadas com minha alegria.

Fitei o alvo e disparei uma bola de fogo precisa bem no centro!

Alanis correu e apagou o alvo que agora era consumido pelo fogo deixando um forte cheiro de queimado no ar.

— Aceitação? Foi por isso que me pediu para que eu me lembrasse de minha mãe e das lembranças boas? Você não estava só me treinando? Isso também é uma terapia?

— Como eu disse eu acredito em você e nas suas habilidades Victória O’Brien. De fato, todas essas semanas vi que você ainda estava muito triste. Isso é natural, mas agora você sabe que aceitação é a chave para superar o trauma. Viva e deixe viver. E agora também sabe que o seu gatilho deve ser a felicidade, alegria, amor, as lembranças boas que você tem de sua mãe e não a dor ou a raiva. Com isso em mente vamos treinar todos os dias para que você possa melhorar mais e mais. Eu não menti: tempo, paciência e treino farão você ficar cada dia melhor com sua Kinese. E sim isso também é uma terapia. Não podia deixar que os sentimentos ruins a consumissem por completo. Pois eles além de ser muito nocivos alimentam os espíritos obsessores e atrasam seu desenvolvimento.

— Você é formado em quê, Seu Apolônio? — Eu perguntei.

— Psicologia. Eu clinicava e dava aulas em uma universidade antes de me tornar servidor público.

— Tá explicado da onde vem todo esse papo de superação e talz. — Brinquei e ele disse:

— Victória você se tornará uma grande paranormal com o tempo. Tenha paciência.

— Você sabe que eu não tenho paciência. — Respondi ainda com lágrimas nos olhos que aliás vocês sabem eu não gostava. Chorar na frente dos outros era algo que eu não suportava, todavia Seu Apolônio sabia como emocionar alguém.

— Com o tempo você vai pegando o jeito. Hoje você já evoluiu e pode evoluir mais.

— Sério acho que nasci sem esse negócio chamado paciência. — Disse agora sorrindo.

— Só precisa melhorar esse egoísmo que ainda reside em seu íntimo.

— O que eu posso fazer, cara? Eu não sou perfeita. Embora esteja muito perto disso. — Comecei a rir e até ele tentou ficar sério, mas não conseguiu. Embora eu soubesse que ele falava sério. Egoísmo era um de meus defeitos mesmo.

Alanis terminara de apagar o fogo e agora voltava para junto de nós e eu disse para ele baixinho:

— Ela não gosta de mim, não é?

— Alanis só está com um pouquinho de ciúmes. Logo, logo isso vai passar. Você vai ver.

Alanis com ciúmes? Nossa eu não havia percebido isso. Na verdade, nós éramos diferentes: ela calma e focada, eu tinha um pavio curto e era muito dispersa, mas jamais pensei que ela tivesse ciúmes de mim. Meu raciocínio foi interrompido então quando a porta dos fundos se abriu lentamente. Quem devia ser? A casa tinha campainha, mas a pessoa não tocou. Simplesmente entrou casa a dentro e foi em direção a porta dos fundos? Fiquei tensa. Poderia ser alguma daquelas criaturas que me atacaram? Me virei alarmada em direção a porta.

Foto: Pixabay.