23/12/2021

Capítulo sete

A aparição no morro do castelo

De repente me vi novamente no meu quarto com Alanis e Seu Apolônio me olhando com uma expressão séria e preocupada. O espinho ainda preso ao teto gotejava e já formava uma pequena poça de seiva verde no chão. Eu fiquei muito fragilizada com aquilo que vi e então as lágrimas me escaparam dos olhos. Não entendia a causa de tudo aquilo só podia ser uma visão, mas foi tão real. Eu podia até mesmo sentir o medo, a tensão de minha amiga.

Não poderia imaginar que ter essas visões pudessem mexer tanto comigo. Não queria ver isso de novo. Não queria sentir a dor de saber que alguém irá sofrer. Não queria sentir a dor alheia de uma forma tão forte assim. Além do mais me sentia culpada. Nas últimas duas semanas eu me fechei muito.

Fiquei concentrada em meu próprio sofrimento e não procurei Julia ou Thaís. Nem sequer uma ligação eu fiz. Eu estava ficando mais e mais angustiada. Não gostava de chorar na frente de ninguém, mas não pude conter as lágrimas naquele momento. Era difícil ficar calma depois de ver e sentir tudo aquilo. Podia ser orgulhosa e até egoísta, mas não podia ser assim para com os meus.

— Victória você está bem? Até parece que você viu uma assombração. — Seu Apolônio me perguntou.

Foi difícil colocar tudo em palavras:

— Uma visão. Eu vi minha amiga Júlia da escola. O Homem do Capuz Negro sequestrava ela. Eu vi… ela chorando, com medo. Eu senti o medo dela, o desespero. Foi muito real… eu não… imaginei que uma visão fosse assim. Tinha uma serpente também. Uma verde com cabeça oval, olhos grandes e um padrão complexos de escamas negras misturadas ao verde.

— Uma boomslang. Uma serpente muito venenosa nativa da África subsaariana. — Disse Alanis séria. Cara ela era muito cdf!

— Victória, descanse. Eu sei que o que estou dizendo pode parecer difícil, mas não se atenha assim ao que viu. Quando essas visões surgem o vemos nelas podem levar dias, semanas ou até mesmo meses para acontecer. Algumas vezes até anos.

— Não acho que vai levar tanto tempo. Preciso falar com ela agora e me certificar que… ela está bem.

— Eu compreendo. — Disse Seu Apolônio.

Fui até a sala e peguei o telefone preto sem fio. Ainda estava sem celular, pois o meu foi queimado no incêndio. Seu Apolônio queria me comprar um, mas achei melhor esperar. Queria ficar mais tempo isolada do mundo. Me arrependi. Não devia me isolar. Liguei e ela atendeu com um alô cansado. Me deu uma bronca por sumir e não dar notícias e ah… por ligar quase as quatro da manhã para a casa dela.

Estava bem. Fiquei tranquila e Alanis me deu um copo de água com açúcar e o gesto dela me surpreendeu. Disse a eles que poderiam voltar para seus quartos e dormir. Que eu já estava bem e na verdade estava. Antes de se deitar, entretanto Seu Apolônio retirou o espigão do teto subindo na escada que tínhamos nos fundos. Falar com Júlia me tranquilizou muito e depois da água e do açúcar o choque foi passando. Na verdade, não queria dormir. Tinha medo de ver alguma coisa ruim. Não poderia suportar a ideia de ter outra visão ou mesmo me lembrar da noite em que minha mãe fora atacada. Acho que no fim eu tinha muitos motivos para não dormir. Contudo o sono acabou me vencendo e rezei para não ver mais tragédias ou lembranças.

Não vi.

Acabei dormindo.

De manhã ao acordar me lembrei dos sonhos estranhos que tive a noite. Sonhei que estava na Avenida Chile olhando para a Catedral a noite. Depois sonhei que comia um cupcake rosa e por fim sonhei que segurava uma vela de cera branca. Não sei o significado de nenhum desses sonhos e honestamente acho que eles não significavam nada. Acordei de manhã olhando para o buraco no teto.

Ouvi uma melodia doce invadir meu quarto. A mesma ainda era triste, contudo bela. A reconheci de imediato: Moon Light Sonata de Beethoven. Tocada em um violino. O som vinha do quarto de Alanis. Fiquei em dúvida: ia até lá ou não? Bem como sou abusada fui até lá e a encontrei tocando um violino. O quarto era como o meu salvo por um piano.

— Posso? — Perguntei se podia tocar, mas Alanis estava de olhos fechados e parecia estar totalmente concentrada em seu ensaio. Ou estava me ignorando? Bem não fiquei esperando permissão e comecei a acompanhar ela. Aprendi um pouco de música através de um projeto social realizado há alguns anos na comunidade em que eu morava.

Infelizmente o professor e idealizador do projeto fora morto em um tiroteio. Ninguém continuou o seu trabalho. Fiquei triste por ele, mas não pelo piano. O fato é que eu nunca gostei muito desse estilo de música. Prefiro rock, metal e até funk. Sou bem eclética. E vi que ainda era capaz de tocar um pouco. Notei uma pasta com várias partituras disposta organizadamente sobre o piano. Ali haviam outras músicas em diferentes arranjos. Vi algumas partituras com armaduras de clave. Clave de Sol Maior; Clave de Fá e a de Dó. Quando comecei a tocar Alanis abriu os olhos e se espantou:

— Victória? Você sabe tocar piano?

— Só um pouco. — Ela parecia triste, distante com um olhar vago como se a mente estivesse a quilômetros daquele quarto.

— Peço que me perdoe. — Ela parou de tocar e olhou para mim. Continuou:

— Eu fui rude com você esse tempo todo. Nós somos diferentes e acho que isso me fez ficar um pouco distante de você. Quer dizer seus modos, a forma como você fala tudo que lhe vem à cabeça. Você é muito extrovertida e as coisas acabaram ficando piores, pois eu comecei a pensar… que talvez eu pudesse ficar em segundo plano aqui em casa.

Eu fui uma tola. A verdade é que fiquei com ciúmes. Meu pai te trata tão bem. E com razão você é uma boa pessoa. Eu só percebi ontem quando eu vi a sua dor… depois da visão. Acho que foi empatia. No fundo não somos tão diferentes poderíamos coexistir bem assim como piano e violino em uma música. Sabe, eu também passei por maus bocados nas primeiras vezes que manifestei minha Psi-Gamma. E também perdi… familiares.

— Nossa Alanis. Eu… nem sei o que dizer. — Ela havia me desarmado. Achei que iria implicar comigo de novo, entretanto se desculpou. Foi como o Seu Apolônio disse: ela tinha ciúmes de mim. Achava que eu poderia tirar o amor que o pai sente dela deixando-a em segundo plano ou algo assim como ela mesma havia dito. Então eu disse:

— Tudo bem. Eu sei que posso ser meio irritante as vezes. Você não precisa se desculpar.

— Bem na verdade eu só não te tratava pior por conta de tudo o que aconteceu com aqueles monstros e sua mãe. Sabia que você tinha passado por maus bocados e ontem tudo piorou ainda mais, contudo você não precisa enfrentar isso sozinha. Eu gostaria de lhe apoiar assim como meu pai me apoiou.

Dava para ver que ela ainda estava triste. Era como se ela não estivesse apenas com a consciência pesada por ser indelicada comigo todo esse tempo. A minha reação a visão que tive despertou lembranças fortes nela. Ela mesma disse que passou por coisas ruins quando manifestou seus poderes extra-sensoriais. Assim indaguei:

— Eu gostaria de saber, mas se você não quiser falar eu vou entender: o que lhe aconteceu quando você manifestou sua Psi-Gamma? Quem é você? De onde veio? — Ela respirou fundo e disse:

— Eu tinha convulsões quando sentia poderes de outros seres, pessoas e espíritos. Controlar as manifestações extra-sensoriais sempre é mais difícil do que a cinese. Nessa época, Seu Apolônio já havia me adotado. Esse é meu maior medo: ter outra convulsão. Não consigo nem pensar na ideia. Quanto a meu pai ele me adotou há cinco anos atrás. Eu era como você. Uma menina pobre que morava em uma comunidade muito violenta na Zona Norte. Eu via bandidos lutando com policiais quase todos os dias. Antigamente as guerras eram travadas entre nações como podemos ver nas duas primeiras.

Hoje, porém são travadas em escalas menores. Extremistas impõem sua vontade através do medo. Terroristas semeiam esse mesmo medo nos corações das pessoas. Lugares são explodidos em atentados e muitos quando não morrem ficam mutilados. E em países como o nosso temos confrontos armados entre meliantes e as forças policias. De certa forma ainda estamos em guerra. Isso é assustador. — Alanis era uma garota muito inteligente. A forma como ela falava era incrível. Ela tinha uma dicção perfeita. Mais o que me chamou mesmo a atenção foi a intensidade de seu relato. Eu podia ver que no fim éramos diferentes, mas tínhamos realmente muitas coisas em comum. As mesmas dores e traumas. Ela continuou:

— Ver e ouvir sons de balas cortando os céus. Ver e ouvir gritos e choros de pessoas desesperadas e reféns das circunstâncias aonde moram é complicado. Minha mãe morreu ao me dar à luz e meu pai me criou sozinho. Ele… morreu em um confronto. Era pedreiro e um dia foi alvejado por uma bala perdida quando estava em casa. Ele não tinha ido a lugar algum. Só estava em casa… comigo. Dizendo que tudo iria acabar bem. Não acabou nada bem. Só mais um nas estatísticas. Só mais um em um círculo interminável de vítimas inocentes. A tragédia foi noticiada e só. Logo todos se esqueceram dele. Se esqueceram da indignação. Até que uma outra atrocidade substituiu essa. E logo outra veio e o ciclo interminável de violência continuou a se perpetuar. Eu tinha oito anos e nenhum parente.

Fui para um orfanato e era atormentada por outras crianças que sempre diziam que ninguém adotava crianças grandes só bebês de colo. Eu dizia que não. Que isso não era verdade, mas era. Enquanto os dias passavam mais certeza eu tinha daquilo. A dor da rejeição é terrível, Victória. Ninguém me queria. Passei dois anos nessa angustia e vi muitos bebês saírem e eu ficar. Outras crianças mais velhas também ficavam lá.


Só para ver a esperança nascer, mas não crescer, pois era logo cortada como uma árvore sem frutos. Eu me perguntava o que era pior: ter esperança me motivando a seguir hoje só para ver ela ser arrancada amanhã ou não ter esperança e simplesmente não conseguir ir adiante com o sonho de ter de novo uma família. Então quando completei dez e comecei a pensar que ficaria ali até os dezoito Seu Apolônio apareceu e me adotou. Hoje eu só penso em ajudar as pessoas da melhor forma possível. Por isso não me permite ir adiante com meu ciúme. Quero te ajudar agora lhe oferecendo meu apoio. Quero apoiar você e todos que eu puder. — Os olhos de Alanis agora estavam inundados. Eu me levantei e a abracei também com lágrimas nos olhos.

Não podia imaginar como um menino tão bonito podia ser tão pentelho! Foi lá para casa treinar naquela manhã de domingo e ficamos os três reunidos pela primeira vez para praticar nossas cineses. O treino foi ótimo. Vi Alanis e Bernardo demostrarem um grande domínio de suas habilidades psíquicas. Minha interação com eles foi boa apesar de ser bem desajeitada ainda se comparada a eles, mas no fim fizemos alguns exercícios de defesa em equipe. Até que trabalhávamos bem juntos, contudo eu as vezes não seguia as ordens do líder que nessa ocasião foi o Bernardo. No fim do treinamento enquanto todos lanchavam na cozinha eu me retirei e fui para a sala para escrever uma poesia. Sim eu gosto de poesia tá!

— Fogo eterno que traz luz para a escuridão. Vem de dentro e extirpa a solidão. — Versos que brotavam do fundo de minha alma. Traziam alento ao meu coração. Quase como se uma presença bendita os sussurrassem em meus ouvidos. Era uma inspiração benigna e muito especial. Nunca sentira algo assim ao escrever poesias. Esses versos simples e singelos me pareciam muito especiais.

— Não sabia que você gostava de poesias! — Disse Bernardo me surpreendendo. Fiquei vermelha e disse:

— Eu preferia ter privacidade se não se importar.

— Não precisa ficar com vergonha. — Ele disse com um sorriso no rosto e eu fiquei mais vermelha. O garoto mexia mesmo comigo. Não costumava ter vergonha, mas perto dele eu ficava constrangida e mais ainda por ele saber que eu gostava de poesias. Fiquei com receio que ele me achasse uma boba.

— Fala sério cara! Eu vou subir! Será que eu não posso ficar um minuto sozinha! — Subi correndo me achando uma perfeita idiota. Podia ter ficado mais e conversado um pouco com ele.

— Victória, não vá. Quer dizer eu só gostaria de lhe dizer que os versos são bonitos. — Nossa ele tinha feito um elogio! Tinha que dizer algo em resposta sem deixar transparecer que estava encabulada:

— Eu sei que eu sou boa. — Disse e pisquei. Aí droga será que fui ousada demais? Bem agora já tinha dito. Ele riu em resposta e eu subi.

O Dr. Carminati me chamou no escritório de Seu Apolônio para conversar acerca do que ele havia descoberto a respeito do cadáver. Seu Apolônio estava lá e ele parecia tenso. O doutor também assim eu já esperava coisas ruins, contudo já fui falando:

— Que que tá pegando gente?

— Senhorita O’Brien você não vai gostar. — Disse o bom doutor franzindo o cenho.

— Na boa que modos são esses? Primeiro o Seu Apolônio começou com essa de senhorita O’Brien e agora você também? — Protestei. — Só Victória já está bom! Não sejam caretas!

— Senhorita… — continuou o doutor.

— Desembucha logo careca! — Não aguentei.

— Ela é mesmo bem direta. Como você havia dito Apolônio. Mas eu te disse que eu estava ficando mais calvo! Você nem sequer me deu ouvidos.

— Carminati, por favor, já disse que isso não é algo com que você deva se preocupar. — Disse Seu Apolônio com um sorriso nos lábios.

— Para você é fácil não é careca! Enfim…. — Ele olhou para o teto como que para encontrar coragem e continuou:

— Pois bem. O grau de carbonização do corpo era por deveras acentuado. De modo que foi demasiadamente difícil encontrar indícios que apontassem a causa da morte. Ou ainda que pudessem conduzir a uma verificação de características primárias inerentes a qualquer ser como sexo, estatura, idade ou mesmo a etnia.

Pensei em fazer um exame de DNA, mas não tinha nenhuma amostra de referência o que acabou por invalidar essa abordagem. Coletei um fragmento de disco intervertebral, mas também não cheguei a lugar algum. Não encontrei material orgânico de qualidade. O mais estranho é que a suposta máscara de pássaro foi fundida a face devida a alta temperatura.

— Olha só dá para você falar a minha língua tio?

— Senhorita você carbonizou um corpo e eu não consegui identificar quem ou o que era aquilo mais uma coisa posso afirmar: já estava morto quando você o queimou no quarto quando aquela coisa atacou a senhora sua mãe. — Disse o Dr. Carminati.

— Isso é um alívio, mas careca você não tinha dito que não dava para dizer nada a respeito do corpo? Como pode saber que já estava morto?

— Depois de ter executado os testes que eu mencionei eu contatei um amigo para me auxiliar. Um cirurgião dentista especializado em Odontologia Legal, assim tentamos uma nova forma de identificação antropológica.

Ele sugeriu um exame mais detalhado. Na arcada dentária, pois os dentes são a estrutura mais resistente que temos em nosso corpo. Eles têm a capacidade de resistir à carbonização em temperaturas de até 80 º C. Neles ficam preservados um bom material genético. Mas devido ao alto custo e a grande dificuldade de se extrair material genético dos dentes essa análise acaba sendo descartada, mas dadas as circunstâncias apelamos para esse método. Seu Apolônio custeou tudo.

Mas novamente não tínhamos amostras de referência dessa forma busquei amostras para comparação no banco de dados de todas as pessoas fichadas nos últimos cinco anos. Olhei também o de pessoas desaparecidas e nada. Claro essa comparação foi a mais difícil e conseguir o acesso também. Tive de cobrar muitos favores de muitos velhos amigos. Até que tudo não deu em nada.

Foi aí que ao analisar com mais calma a arcada dentária encontramos uma rara substância que remonta a meados do século XIX que por algum motivo continuou preservada no cadáver. Essa substancia era amplamente usada para se fabricar uma pasta de dentes rudimentar que levava dentre outras coisas pó de juá que por sua vez danificava o esmalte dos dentes. O cadáver em questão apresentava um alto índice de desgaste do esmalte dentário.

— Cara você tinha que trabalhar em um daqueles seriados de investigação, careca! Você até parece o Sherlock Holmes! Só que calvo. Foi assim que descobriu que o cadáver é de um morto vivo?!

— Bom o fato dele ter levantado e tentado me estrangular sugeriram que se tratava de um morto vivo! Mas eu estou mesmo tão calvo assim?

— Como? Esquece essa de cabelo! O troço morto te atacou?! — Fiquei abismada!

— Sim, o cadáver tentou fazer isso duas vezes. Agora que conduzi toda essa investigação usando a ciência mortal vou me juntar ao Apolônio e auxiliar ele na investigação sobrenatural. Até porque algo de muito incomum foi encontrado. A dentição guarda uma enorme semelhança com a de presas de serpentes solenóglifas — Disse o Dr. Careca.

A coisa ficava mais bizarra a medida que ele continuava. Mortos que voltam a vida? Ainda que de forma rudimentar como uma espécie de “zumbi” e ainda por cima presas de serpentes. Eu fiquei alarmada e não pude deixar de perguntar:

— Serpentes sole o quê?

— Serpentes peçonhentas são equipadas com uma glândula que produz veneno localizada no maxilar superior. Com uma dentição bem específica e particular a esses répteis as serpentes podem injetar veneno. Essa dentição pode ser classificada como opistóglifas, áglifas, proteróglifas ou solenóglifas.

Serpentes solenóglifas têm presas que se projetam quando abrem a boca o que torna a inoculação de veneno muito eficaz. Elas são um grande perigo para o homem e pertencem a esse grupo a surucucu, jararaca e a cascavel. Também são conhecidas como serpentes Solenoglifodontes. — Disse o médico careca.

— Nossa obrigada pela aula. Você deve assistir a muitos documentários, mas e a criatura? O cadáver? Onde ele está agora? — O medo tentou se apossar de mim novamente. A coisa poderia estar à solta. Ou aqui?

— Não. O corpo está no necrotério do hospital preso entre esse plano espiritual e o outro, mas não se preocupe. Ninguém pode vê-lo e ele não pode fazer mal algum. O Apolônio em pessoa conjurou runas de bloqueio psíquico.

— Eu iria te contar logo Victória, mas achei que seria mais prudente esperar até que você estivesse pronta, contudo estou surpreso ao ver que isso aconteceu tão rápido. Peço que me perdoe por não falar antes.

Eu queria explodir! Como ele não me contou isso antes! Por outro lado, ele só queria me poupar e quando dei por mim já estava dizendo “tudo bem”. Saí do escritório tensa e com as lágrimas já a saltar de meus olhos. Odiava chorar na frente dos outros. Com medo de não controlar meus sentimentos e realmente explodir em chamas a qualquer momento subi as escadas correndo sentindo um misto de medo, raiva e pavor.

Não demostrei nada disso na sala, mas aquilo tudo era ainda mais bizarro do que eu imaginava. Qual era a identidade da criatura que me atacou? Sem dúvidas não era humano. Não podia morrer. Me tranquei no meu quarto e em uma suplica silenciosa rezei para que minhas mãos não pegassem fogo enquanto eu tentava não me irritar mais! O baque da notícia era forte demais.

A noite chegou, mas minhas chamas não. Fiquei feliz.

Mais calma comecei a arrumar as coisas para a aula amanhã. Eu iria para a escola! Estava decidido! E poderia ficar de olho em Júlia. Não desgrudaria dela e nem de Thaís até ter certeza que elas estavam seguras. Depois de arrumar a mochila e meu uniforme Bernardo bateu na porta me chamando:

— Victória! Venha rápido Alanis está sentindo uma forte energia espiritual!

Arregalei os olhos espantada! O que poderia ser? Um monstro? Um espírito? Ou talvez… o Homem do Capuz Negro! Desci as escadas correndo com Bernardo logo atrás. Seu Apolônio e Alanis estavam na sala. Ela pálida sentada no sofá. Dava para ver que sentir as energias do mundo espiritual ainda desgastava ela. Talvez não ao ponto de ter uma convulsão como no passado, mas ela ficava fatigada. A menina disse:

— Eu senti uma forte onda de energia vindo do centro da cidade.

— Aonde precisamente, Alanis? — Seu Apolônio perguntou alarmado.

— No castelo na verdade. Próximo do Aeroporto Santos Dummont. Creio que se trata de Ahool. Reconheço a sua energia. — Disse Alanis.

— Ahool? — Perguntei. Que droga de nome é esse?

— Sim Ahool o morcego gigante de Java, Indonésia. Enfrentamos ele há alguns meses. Pelo visto escapou de novo do mundo espiritual. É isso que acontece com espíritos e monstros. Nós só os expulsamos desse plano existencial. No geral eles não voltam. Ficam presos lá no pós vida, contudo alguns ressurgem. Afinal não se pode matar o que já está morto.

Ahool consegue inclusive se locomover da Indonésia lá do outro lado do mundo até aqui viajando pelas brechas do mundo espiritual. Assim pode encurtar distâncias. Afinal o mundo espiritual liga todos os lugares desse mundo. — Disse Bernardo respondendo a minha pergunta.

— Você está dizendo que podemos viajar para qualquer lugar do mundo usando portais que levam para o mundo dos espíritos? — Indaguei e Bernardo franziu o cenho. Ele respondeu:

— Nós não. Só monstros e espíritos. Salvo algumas exceções.

— E por que chamar ele de Ahool? — Ainda achava uma droga de nome.

— Quando ele voa suas assas fazem um som que se assemelha a um “ahooooooooo” daí o nome Ahool. — Alanis respondeu.

— Victória, como eu disse antes, temos notado um aumento da atividade espiritual no nosso mundo. Ahool ressurgir comprova que há algo errado, existe uma força perturbando os desencarnados, contudo este pode ser um bom teste. Vá com Alanis e Bernardo devolver o monstro ao seu mundo. Sei que você só tem dois dias de treino prático, mas isso deve bastar para confrontar o morcego gigante de Java. — Disse Seu Apolônio e por um momento pensei em não ir, contudo deixei essa insegurança de lado, pois no fim das contas nunca fui muito de pensar e mais de agir. Me animei. Queria ver o quão boa eu já tinha ficado.

— Está certo! O senhor vem com a gente?

— Infelizmente não. Devo permanecer aqui e continuar minha pesquisa com o doutor Carminati. Ele está inclusive no escritório agora mesmo fazendo uma revisão da literatura especializada em paranormalidade.

— Relaxa esquentadinha você vai ver que Ahool não é tão perigoso assim. Não precisa ter medo.  Disse Bernardo e eu respondi:

— Não pense que eu tenho medo de um morcego!

Fomos de táxi e até que não demorou muito. Mesmo porque pedimos para o taxista correr. Afinal ainda que o morcego não fosse apresentar uma grande ameaça para nós ele ainda poderia morder alguém. Não a pessoa mordida por ele não fica com raiva. Alanis me disse que a vítima também não vira um vampiro. Ela adoece com uma febre terrível tem alucinações e depois vem a falecer.

Não queria que isso acontecesse comigo.

Eu coloquei o pingente que Seu Apolônio me dera. Na verdade, nunca mais o tirei do pescoço. Estava com uma camisa branca, outra vermelha xadrez com as mangas dobradas por cima, short jeans e coturnos pretos. Alanis me deu essas roupas. Disse que, na verdade, nunca foram o estilo dela. Não pensei em aceitar, mas acabei cedendo. Afinal elas combinavam mesmo comigo. No bolso do short eu levava o lenço de meu pai.

Lembrei-me da inscrição bordada “Que Brighid lhe proteja”. Já Alanis pôs um suéter verde escuro com gola em V e calça jeans com tênis branco. Bernardo por sua vez estava com uma camisa polo azul marinho e jeans e também usava tênis só que pretos.

Não levamos mochila nem bolsas com nada para nos auxiliar já que o confronto aparentemente seria rápido. Me arrependo disso até hoje.

 Avistei o Largo da Misericórdia.

Um lugar amplo ao lado da praça Antenor Fagundes aonde um grande edifício se estendia com o nome “Ministério Público” escrito no teto com letras grandes e luminosas. A minha direita via os fundos do Museu Histórico Nacional. Alanis pediu para o táxi parar e descemos. O motorista perguntou se estávamos doidos, pois o lugar era extremamente deserto. Não demos ouvidos apesar de eu querer xingar ele. Alanis não deixou.

A noite havia chegado trazendo consigo um estranho ar nefasto. A lua crescente ostentava um brilho sinistro. Como o sorriso hediondo e distorcido. Aquilo me perturbava ao ponto de querer voltar, entretanto adentrei aos mistérios sombrios de uma noite sem estrelas. Estava frio e eu podia sentir o cheiro do mar logo atrás de nós.

Olhei boquiaberta para a Ladeira da Misericórdia feita de pedra e me perguntei como era a vida na época em que ela fora construída. Alanis disse que o bairro do castelo era o primeiro do Rio de Janeiro e a julgar pelo entorno fazia sentido. Aquele pedacinho escondido da cidade parecia ter parado no tempo e eu pude sentir que ali de fato era o coração do Rio de Janeiro colonial.

Nessa hora um homem surgiu das sombras de uma árvore. Bernardo e eu nos entre olhamos enquanto Alanis pediu para darmos um paço para trás.

 — O que foi? — Perguntei a ela.

— Algo de errado está acontecendo aqui. Este homem está emanando a energia de Ahool.

— Como isso pode acontecer, Alanis? — Bernardo perguntou.

— Eu não sei, é como se ele estivesse… possuído.

O homem caiu no chão em frente à Igreja da Misericórdia que ficava ao lado da ladeira de pedra. Ele começou a se contorcer freneticamente. Seus olhos se reviraram nas orbitas ficando brancos. Ele começou a suar e seus braços se agitavam convulsivamente. As pernas não paravam quietas tensionadas e depois relaxadas. Dobrando e esticando. O homem então começou a gemer. Estava de jeans e camisa preta e em uma contração a camisa se levantou e eu fiquei nervosa ao ver que uma mão surgiu dentro de sua barriga, tentando se esticar em baixo de sua pele.

Foto: diariodorio.com