flemish 498997 960 720 - Victória O’Brien e o Saltério dos Mortos – Cap. 5

11/02/2021

Capítulo cinco

Medo

Fiquei tensa não sabia quem podia ser, contudo presumi que não seria um amigo. Ao olhar vi que era um garoto. Acendi minhas mãos e disparei uma bola de fogo nele. Ele se abaixou e Alanis saiu correndo com o seu extintor. A fumaça branca e gelada apagou o fogo que pegara na porta e o garoto ficou assustado com os olhos arregalados.

Olhei para ele e bem… meu coração bateu mais forte. Se era um vilão eu não queria lutar com ele e sim levá-lo comigo para o altar! Sério nunca acreditei em amor à primeira vista, mas devo dizer que o garoto me deixou balançada. Tinha cabelos negros, olhos castanhos, nariz fino e lábios bem desenhados. Sua pele era caramelada e ele estava com uma camisa azul, jeans e tênis.

Quem era ele?

— Nossa estou usando tanto esse extintor que deveria dar um nome a ele e torná-lo a mascote da casa. — Alanis disse com ironia e Seu Apolônio correu para junto do rapaz perguntando se ele estava bem. Ele fez que sim com a cabeça e disse:

— Desculpe devia ter batido antes de entrar.

— Victória, esse é Bernardo Ferreira da Silva, meu aluno. — Seu Apolônio me apresentou e continuou:

— Bernardo, esta é Victória Del Valle O’Brien, minha filha. — Fiquei vermelha quando ele me chamou de filha e mais ainda quando Bernardo apertou minha mão.

— Desculpe por te assustar, mas você não tem uma mira muito boa para minha sorte! — Ele disse rindo e eu respondi:

— O doido NÃO saia entrando assim na casa dos outros! — Me dei conta que minha vizinha deve ter se assustado da mesma forma quando eu entrei na casa dela depois daquele avistamento bizarro na vila em que eu morava antes.

— Dessa vez ela tem razão não entre sem bater. — Alanis disse e eu fiquei admirada que ela me deu razão.

— Desculpe as portas não estavam trancadas. No mais ele é bem esquentadinha. Não precisava se irritar tanto.

— Tudo bem já passou. — Seu Apolônio disse e eu me vi olhando diretamente para ele e ainda segurando sua mão.

— Prazer Victória! Sua mão é tão quente— Ele disse e eu continuava olhando-o. Céus tinha que dizer algo.

— Dá próxima vez que me assustar eu lhe dou um soco. — Disse a primeira coisa que me veio à cabeça. Droga! Isso era algo muito idiota de se dizer, mas fiquei muito admirada com ele. Não conseguia pensar direito!

Bernardo ficou para o almoço e eu tentei me controlar. No fim das contas nunca fui o tipo de garota que se derrete toda assim. A refeição foi ótima. Seu Apolônio cozinhava muito bem e fez meu prato preferido: bife mau passado com batatas fritas. Depois chegou a sobremesa Red Velvet Cake que eu comi sem cerimônia. Aliás não fazia cerimonia com nada e Alanis me chamou de mau educada. Comi o bolo sem usar o pratinho e os talheres de sobremesa.

Dei a língua para ela e Seu Apolônio riu com a brincadeira. Bernardo também riu. Passada a sobremesa ele foi treinar sua cinese no quintal. Eu fiquei observando para aprender já que Alanis nunca deixava que eu acompanhasse seu treino. Ela se ofereceu para tirar a mesa e lavar a louça enquanto estávamos no quintal.

Bernardo era um Criocinético controlava o gelo e as baixas temperaturas. O vi criar blocos de gelo bem grandes assim como estacas, esferas e espinhos também das mãos. Não aguentei e perguntei a Seu Apolônio:

— Por que Bernardo usa somente as mãos para criar gelo assim como Alanis e eu?

— Excelente pergunta, Victória. Na verdade, paranormais podem criar e manipular suas cineses de qualquer parte do corpo, contudo as partes mais utilizadas são os membros superiores, mais precisamente as mãos. As segundas partes mais usadas são os membros inferiores, pés e pernas. Outros usam tanto os membros superiores quanto inferiores inclusive em socos e chutes.

— Ok, mas porquê no fim das contas aprender tudo isso. Quer dizer o que faz gastar suas horas livres treinando o Bernardo? Alanis tudo bem ela é sua filha e penso que é natural um pai passar seus conhecimentos aos filhos, mas o Bernardo não é nada seu.

— Eu tenciono um dia criar uma instituição de caridade que ajude pessoas como nós a se desenvolverem como paranormais. Para que assim possam usar esse conhecimento para fins pacíficos.

— Entendo, todavia não vejo outras pessoas aprendendo a controlar suas cineses. Existem outros como nós?

— Sim existem. Veja bem Victória aprendemos as artes psíquicas para nosso próprio desenvolvimento espiritual e para o desenvolvimento de nossa sociedade. Para crescermos como pessoas. Normalmente quando se descobre que é um sensitivo você se sente um estranho. Um ser diferente e amaldiçoado. Isso se dá pelo medo do desconhecido que é natural a todos os seres humanos. Por isso existe em todos os lugares do mundo paranormais dedicados a treinar e ensinar essas pessoas a serem boas. Não somos os únicos.

— Isso é tudo muito lindo, mas ainda não entendo o que leva um sensitivo a fazer apenas o bem.

— Aí é que está Victória também existem sensitivos maus. É como uma arte marcial. Se você descobre que tem aptidão para isso logo concluísse que você vai estudar sua arte marcial apenas para se desenvolver e se tornar alguém melhor. Contudo existem pessoas que aprendem lutas só para machucar os outros. Assim também existem sensitivos que usam suas habilidades para ferir. Destruir e não construir.

— Deveria existir uma instituição que controlasse isso.

— Existiu, mas era uma organização que não pôde funcionar nesse mundo, pois infelizmente existem muitas pessoas cruéis nele. — Seu Apolônio pareceu triste e continuou:

— Uma pena na verdade. Permita-me que eu lhe conte a história por trás de todo o conhecimento moderno da Psi, Psiônica e das cineses:

— Psi pode ser usada inclusive para se fazer coisas mais extraordinárias que o controle das cineses. Pode se usar ela para conjurar espíritos bondosos que auxiliam os sensitivos e ainda se criar poções e curar pessoas – como o pai de Paola faz.

Um dia um homem chamado Jean Fradique na França no século XIX começou a estudar fenômenos paranormais. Ele foi levado a estudar tais fenômenos depois do crescente número de casos sobrenaturais que apareceram na época. Movimentos como o espiritualismo e o mesmeirsmo que causavam um grande furor em muitos na época.

Jean logo encontrou a Psi (devido aos seus estudos e investigação acadêmica). Uma força que rege a vida e o pós vida. Ele era um homem de muitas poses e logo conseguiu criar uma organização de ensino voltada para o estudo do sobrenatural. A universidade de ciências naturais, arcanas e psíquicas sediada em Paris. A universidade era paga mais tinha um sistema de bolsas que ajudaram inúmeros sensitivos. Ela também promovia e ajudava muitos projetos de caridade.

Com isso ele foi um dos pioneiros de uma ciência nova: Psiônica. Ele a usou para ajudar a desenvolver os poderes psíquicos dos sensitivos. Muito da alquimia da idade média foi usada para definir grandes conceitos de seus estudos psíquicos. Jean viu que na verdade os alquimistas eram os primeiros sensitivos da história que se tem notícia.

Dentro de sua universidade haviam três casas: Conjuração, Alquimia e Cura. Dentro dessas casas o estudo das cineses era uma matéria obrigatória. Jean viu que existiam sensitivos em vários lugares da França – seu país – e então passou a estudar todos os fenômenos paranormais que pôde.

Jean era o responsável pela escola e pela casa da conjuração. Ele provou que a Psi poderia ser usada inclusive para se fazer algo impensável: necromancia, feitiçaria e afins, porém isso tudo era muito perigoso. Enquanto muitos consideravam o conhecimento de Jean uma reles obra de ficção, outros chamavam esse conhecimento de paranormalidade. Existiam também aqueles que passaram a usar o conhecimento de Jean para fins maléficos. Faziam coisas bizarras como conjurar espíritos maus, feitiço bizarros e pactos profanos com monstros. Essas pessoas criavam seitas e sociedade secretas muito perigosas.

No fim Jean não gostou disso e começou a ficar doente. Deprimido com tudo isso. Ele morreu, no entanto traído, pois seu irmão o assassinou.

A sua universidade ruiu e acabou falindo devido a corrupção. Logo muitas pessoas deixaram de ser ajudadas e os projetos de caridade acabaram. Na sua época de prosperidade a universidade formava sensitivos que com seus diplomas criavam escolas (unidades menores das casas) em seus países e regiões de origem com verba da própria universidade e ligadas a ela como filiais.

O conhecimento se perpetuou por muitos países ao redor do mundo, porém esse sistema não existe mais. O assassino de Jean foi preso e tudo o que restou da universidade dele foram as lembranças de seus tempos áureos.

Porém o legado de Jean Fradique ainda vive: hoje sensitivos ainda estudam os ensinamentos dele que ficaram registrados em livros, pergaminhos, grimórios e etc…

 — Seu Apolônio, nossa não sei nem o que dizer.

— Victória isso é sério. — O tom de voz dele era mais grave agora.

— Na verdade, é uma história triste. O cara só queria ajudar e acabou deprimido, traído e assassinado, mas então todos os sensitivos que ainda estão espalhados por aí estão sozinhos e desamparados?

— Infelizmente, sim. Eu aprendi a lidar com meus poderes porque tive a sorte de nascer em uma família de paranormais, contudo nem todos têm a mesma oportunidade.

— Alguém devia fazer algo a respeito disso.

— Verdade. Quando descobri que Alanis era uma sensitiva eu a treinei. Logo ela descobriu Bernardo.

— Descobriu?

— Foi assim que soubemos que você estava em perigo naquela noite terrível: radiestesia a Psi-Gamma de Alanis. Ela consegue sentir a energia psíquica de outras pessoas. Assim podemos achar outros que precisam de ajuda. Até mesmo se ela tocar um objeto pode achar uma pessoa pela energia deixada no mesmo.

—Psi-Gamma?

— Um outro nome para o fenômeno de manifestação extra-sensorial. Mais para frente você vai aprender mais sobre isso.

— Ah… Que habilidade incrível!

Bernardo agora produzia raios de gelo com as duas mãos. Ele não havia se dado conta de que Seu Apolônio não estava mais prestando atenção nele. O garoto estava bem focado. Continuei a conversa perguntando:

— Existem um mundo espiritual então? Mesmo?

— Sim.

Continuei:

— Tudo bem, mas como as pessoas que não são sensitivas enxergam os espíritos?

— Não enxergam, Victória.

— Ok, então se minhas mãos se incendiarem na escola, por exemplo, por acidente. Elas não vão ver o fogo?

— Sim a cinese pode ser vista, pois é uma manifestação física da Psi em movimento. Que pode ser usada, apesar disso, para atingir espíritos. Forçando-os a voltarem para o mundo espiritual. Acontece a mesma coisa com monstros como o pé grande.

— O quê? O pé grande existe?

— Sim ele é uma criatura do mundo espiritual. Não é só porque se chama mundo espiritual que não vai existir seres de carne e osso. Todos os monstros famosos e seres de folclores existem e habitam o mundo espiritual. Só que em um plano diferente. Inclusive o saci, o curupira e outros. A diferença é que as vezes eles querem se tornar visíveis. Assim pessoas que não são sensitivas podem ver eles e espalhar suas histórias e mitos.

— Nossa! Algum sensitivo ou humano normal já entrou no mundo espiritual?

— Apenas em níveis mais superficiais. O mundo espiritual é como o oceano. Podemos adentrar – estando vivos – em camadas bem perto da superfície (nosso mundo e onde a maioria dos monstros existem) se adentrarmos mais fundo, aonde os espíritos e alguns monstros bem poderosos moram podemos morrer devido ao alto fluxo de Psi.

— Tenso.

— Céu e Inferno existem Victória. Eles são planos que fazem parte do mundo espiritual conforme já te ensinei. Devemos tratar este outro mundo com respeito.

— Seu Apolônio, nos pertencemos a qual escola? Conjuração, Cura ou Alquimia?

— Pertencemos a escola da Conjuração Victória. Foi nela que eu me graduei e são os seus ensinamentos que eu passo para frente, pois são os que eu sei, mas não se preocupe com isso agora. Mais à frente você estudará mais e quando estiver pronta você verá essa matéria.

— Sim. Uma última pergunta: como todos os outros seres humanos não sabem de tudo isso?

— Eles sabem a internet mesmo está repleta de coisas sobre paranormalidade, espíritos e cineses. Mais eles não acreditam, pois acham que tudo isso é história da carochinha. Só quem é paranormal acredita e quando expõem seus poderes– que não podem ser explicados pela ciência.

Todos pensam que a pessoa é uma charlatã. Por isso não existe, por exemplo, um órgão secreto do governo que ache algo conclusivo sobre paranormalidade. Apesar de muitos já terem tentado a Ciência convencional no fim não tem meios de entender, replicar e praticar o nosso conhecimento. Pelo menos não ainda que eu saiba. Por isso não precisamos nos preocupar, mas ainda assim é altamente proibido falarmos de nossos dons para não nos expormos.

— Faz sentido. Então só algumas pessoas nascem com esses “dons” paranormais?

— Sim. Uma parcela das pessoas nasce com esses dons. Geralmente é passado de pai para filho. Tão logo seus filhos e netos serão sensitivos, entretanto há casos em que um filho pode ser paranormal e outro não e alguns podem não ter esses poderes.

Agora que ele tinha tocado no assunto e disse que criaturas místicas existem pensei na criatura que eu vi no telhado de minha casa antes dela pegar fogo. Fiquei receosa em tocar no assunto. Não sabia se deveria contar sobre isso. Contudo pensei bem e resolvi meu pequeno dilema com uma decisão: contar sobre o ocorrido e perguntar o que exatamente era aquela coisa. Provavelmente ele saberia quem ou o que era aquilo. Perguntei:

— Seu Apolônio, há algo que eu preciso contar ao senhor. No dia em que minha mãe foi atacada eu vi uma criatura humanoide apoleirada no meu telhado. Era imensa, tinha asas e um par de olhos vermelhos. Era toda preta e de aspecto ameaçador, mas não me atacou. Simplesmente voou quando me viu.

Seu Apolônio arregalou os olhos e Bernardo parou de treinar. Ele agora estava sentado um pouco ofegante. Provavelmente fazendo uma pausa no treino. Olhei de novo para o senhor de meia idade e sua expressão mudara completamente. Ele estava visivelmente abalado. Quase como se o que eu acabara de dizer tivesse assustado o homem profundamente.

Fiquei com medo de repente. Acho que não devia ter falado nada.

— Victória, isso não pode ser possível! Você viu o Homem Mariposa?

Bernardo correu em nossa direção ao ouvir esse nome e Alanis saiu da cozinha também alarmada. Todos olhavam para mim tensos e com medo nos olhos.

Um vento frio soprou me arrepiando e trazendo consigo uma promessa ruim, um mal ainda pior do que tinha visto até então prestes a emergir. Foi essa a sensação que eu tive ao ver aqueles que me fitavam engolidos pelo terror.

Foto: Pixabay.