statue 3767392 960 720 - Victória O’Brien e o Saltério dos Mortos – Cap. 3

28/01/2021

Capítulo três Ausência

Podia ouvir sua voz novamente sussurrando em meus ouvidos dizendo: “Tenha medo Victória”. Era a mesma voz inumana e feroz que eu ouvira momentos antes do ataque. Ela vinha do Homem do Capuz Negro. Como eu podia ouvir aquilo? Era uma espécie de telepatia. Ele ainda caminhava em minha direção calma e lentamente, mas sem emitir um som sequer.

A criatura maléfica que golpeara minha mãe vinha logo atrás e o fogo se espalhava cada vez mais ao nosso redor. Estava tensa, magoada, ferida e não sabia o que fazer. Perdida em minhas próprias dores eu ouvi:

— Pare aí mesmo criatura!

Era a voz de um homem. Uma voz firme que ecoou pela casa em chamas e na porta atrás do ser mascarado estava parado um senhor. De início pensei ser um dos vizinhos que tinha ouvido meus gritos e chegado para me ajudar, contudo se o fosse eu o teria reconhecido, pois conhecia todos na vila.

Era um homem de meia idade com cabelos grisalhos curtos, pele negra e uma expressão forte no rosto. Vestia um sobretudo preto e sapatos da mesma cor. Era alto, porém um pouco curvado e tinha um nariz grande e largo. Seus olhos castanhos traziam consigo grandes mistérios e um profundo ar de sabedoria. O fogo continuava a queimar e honestamente aquilo tornava tudo ainda mais angustiante. O crepitar se fazia ouvir e o cheiro de queimado tomava conta de todo o lugar.

A criatura atrás do homem de capuz nesse momento parou de andar em minha direção e deu um arranque como fizera antes de golpear minha mãe, mas dessa vez em direção a porta. O Homem do Capuz Negro saiu da porta com um movimento rápido afim de desviar do golpe da criatura. Eu gritei um “CUIDADO” abafado pela fumaça que começava a me asfixiar. O senhor olhou para cima e um pedaço do teto despencou em cima do monstro cobrindo ele de reboco, poeira e telhas flamejantes. A criatura começou a se debater de novo. Seus gritos de dor continuavam horríveis, estridentes e agoniantes.

O senhor foi bem mais rápido do que eu imaginei que um homem de idade poderia ser. Cobriu o rosto com o braço e entrou no incêndio andando em minha direção. Minha mãe em choque desmaiou e eu fiquei sem ação, sem saber o que fazer! O senhor então passou pelo homem do capuz que nada fez se não observar aquela ação. Não sei dizer se o encapuzado estava perplexo demais para agir ao ver que o outro se movia em minha direção. O senhor neste momento por entre as chamas agarrou minha mãe com um dos braços e me deu seu outro. Chorei, mas foi de alívio ao ver que estávamos para sair.

As outras quatro criaturas pareciam compartilhar a perplexidade do homem do capuz negro, pois elas nada faziam se não observar. Comecei então a acompanhar o senhor para fora, correndo quando minha vista enegreceu. Eu estava me sentindo muito cansada. Esgotada na verdade penso que desmaiei por alguns instantes. Meus olhos se fecharam e não vi mais nada.

Quando recobrei os sentidos eu estava do lado de fora no pátio da vila. O chão era áspero e poroso. Tinha muita fumaça saindo da porta e da janela. O ar estava pesado e meus olhos ardiam. O barulho do crepitar das chamas era maior agora. Vendo minha casa queimar notei que estava sozinha, todavia dentro da casa o homem de capuz estava entrando em uma luta corporal com o senhor. Ele devia ter me retirado de lá de dentro.

O homem de meia idade franzia o cenho enquanto estava sendo empurrado para dentro das labaredas! Droga! Eu tinha que ajudar de alguma forma! Fiquei nervosa com receio de que o meu benfeitor pudesse ser consumido pelo incêndio! Minhas mãos voltaram a ficar quentes e logo havia fogo nelas de novo. Fiquei desesperada tentando apagá-lo. Agitei rapidamente elas vendo as pequenas chamas dançarem nas costas e nas palmas de minhas mãos. Meu ombro se queixou do movimento brusco e arfei de dor.

Tive nesta hora uma ideia desesperada: arrancar à estaca que estava alojada em meu ombro. Aquilo não podia ficar ali por muito tempo do contrário… bem eu não queria pensar no contrário. Tentei arrancar com minha mão esquerda só para sentir a mais profunda das dores que eu já tive. Berrei em desespero ao ver que não conseguia tirar. Eu não estava em condições de fazer isso. Por fim me convencia a não tentar mais aquilo, porém não conseguiria suportar aquela dor por muito mais tempo.

Lágrimas e mais lágrimas corriam por meu rosto suado e o desespero tomava conta de mim. Olhei para a ferida e seu aspecto era perturbador demais. Não poderia descrever e a verdade é que só de lembrar eu já fico nauseada. Olhei para o céu por um instante já me permitindo esquecer todo o horror da situação em que eu me encontrava e pensei que tudo estava perdido. Eu tinha uma hemorragia severa e não poderia sair dali. Enquanto que o homem que me prestara ajuda lutava ferozmente com.. Seja lá o que eram aquelas coisas grotescas.

Nesse momento um homem loiro com uma careca de frade e um grande bigode apareceu. Fiquei assustada e minhas mão se acenderam, mas eu mal pude me levantar. Ele disse:

— Senhorita, se acalme eu sou médico e amigo do Seu Apolônio!

— Vai se ferrar! — Gritei e tentei correr, mas nessa hora as pontas dos dedos do homem se acenderam! Uma luz verde surgiu e um grande círculo da mesma cor começou a se desenhar sozinho no chão! Dentro do círculo haviam runas dispostas nas laterais e letras com formatos indistintos que eu não conseguia entender. No centro uma espécie de… puxa qual era mesmo o nome? Aquele troço de matemática… ene… a… eneágono! Era esse o nome do símbolo!

A luz verde então ficou mais e mais intensa e começou a ventar bem forte, porém eu não me assustei. Podia sentir uma energia boa emanando ali e logo a luz cresceu e me envolveu e ao olhar para o meu ombro notei que a estaca estava se dissolvendo. Logo a dor começou a cessar até sumir por completo e a ferida foi se fechando aos poucos. A luz verde iluminou toda a noite rompendo a nefasta escuridão e trazendo consigo um lindo efeito. Quando olhei de novo meu ombro estava curado! Sem nenhum corte e tudo o que restara do ferimento era a mancha de sangue na minha blusa branca.

— Como você fez isso!? — Falei boquiaberta!

— Eu te disse senhorita. Eu sou médico. — Me respondeu o careca. Notei agora que ele usava uma calça jeans e uma camisa social branca.

Nessa hora eu ouvi um som e ao fitar a casa em chamas vi o homem mais velho derrubando o encapuzado e saindo do incêndio com sua roupa fumegando e minha mãe em seus braços. Seu rosto mostrava o desgaste da luta. Ele estava ensopado de suor e respirando ofegante. Ao ver minha mãe fiquei aliviada e minhas mãos apagaram. O senhor quase não aguentou dizer:

— Temos que sair daqui… agora.

— Minha mãe! — Falei desesperada e o homem falou:

— Ela precisa de cuidado médicos. Temos de sair daqui e ajudá-la.

Graças aos céus ela não estava morta! Deus eu havia pensado que ela… havia… ainda bem que não. Isso era um alívio.

O homem agarrou minha mão e me puxou para junto dele. Começamos todos a correr e eu então tropecei e cai. Meu joelho foi ralado no chão áspero. Segurei a vontade de berrar quando olhei para trás e vi o mascarado saindo da minha casa. Sem nenhum arranhão! Não sabia o que ele era, mas sabia que não queria ficar para descobrir.

— Perdoe-me por pedir que se esforce tanto. Você está cansada mais temos que correr. —Disse o senhor.

Eu devia aparentar estar muito acabada ou algo assim para ele falar aquilo, mas a verdade é que isso não importava. Tudo o que eu queria era salvar minha mãe. Ela ainda estava bem segundo o que ele disse. Isso era um alívio. Como disse pensei que ela estivesse… bem levantei e tentei correr. Consegui. Olhei em volta e não vi nenhum movimento dos vizinhos. As portas e janelas das casas estavam fechadas. Eram como se alguém tivesse imposto um toque de recolher.

O que isso significava? Que ninguém se importava com tudo aquilo? Isso era revoltante, mas não tinha tempo para ficar perplexa. Vi o portão e rapidamente o abri para o senhor passar com minha mãe nos braços. Estranhei apenas ele não estar trancado. Tive medo, mas olhei para trás e vi o Homem do Capuz Negro ser envolto em uma névoa negra. Ela levantava o homem que agora flutuava no ar!

— Corra! — Alertou o senhor de meia idade.

Ele me ultrapassou e entrou em um carro bem grande, um subcompacto crossover preto. Minha mãe no banco de trás recostada junto ao doutor que também já estava dentro do carro. Disposta no banco da frente havia uma garota que devia ter a minha idade. Ela usava uma camiseta branca com uma camisa jeans aberta por cima e uma calça também jeans preta. Tinha cabelos longos como os meus, mas castanhos e sem franja, sua pele era branca e seus olhos de um azul profundo. Como um oceano sem ondas em um dia de verão. Seu rosto esboçava o mesmo terror que o meu. Ela estava no banco da frente me olhando e com certeza vendo a coisa que me perseguia.

O senhor estava com as mãos na porta de trás acenando para eu entrar. Olhei do portão para trás novamente e a névoa havia envolvido o homem. Ela agora se fundira a ele e tremulava e corria indistinta no ar tomando a forma de uma… serpente. Uma serpente feita de fumaça preta e olhos vermelhos reluzentes que serpenteava no ar em minha direção!

Gelei.

Não conseguia me mover. Estava atônita demais para isso. Aquela coisa grotesca me aterrorizava. Por que tudo isto estava acontecendo? Eu queria saber. Era um verdadeiro pesadelo. Uma atrocidade fugida de meus piores sonhos estava ali bem perto de mim e pronta para me atacar. Envolta novamente em meus temores encontrei uma grande dificuldade para assimilar tudo aquilo. Meu choque, contudo, neste momento foi abruptamente interrompido quando o senhor pegou minha mão e começou a me conduzir para fora da vila. Eu estava lá parada sem reação e o seu ato me tirou daquele estado.

Entrei no carro e ele arrancou a toda a velocidade. Eu no banco de trás com minha mãe e ao lado dela o doutor. Na frente à garota de cabelos castanhos e o senhor de meia idade.

A serpente de fumaça abriu a boca e uma esfera de energia vermelha surgiu emitindo faíscas que corriam frenéticas em volta dela ziguezagueando e fazendo um chiado bem alto. Logo as faíscas se juntaram e aumentaram seus tamanhos e formaram um feixe de luz que foi disparado na direção do portão de ferro da vila. Booom! Ele explodiu!

Eu estava sentada no banco de trás com minha mãe ainda inconsciente e perguntei em desespero:

— Essa coisa está atirando raios na gente!

— Fique calma meu anjo. — Respondeu o senhor.

A garota no banco da frente parecia estar tranquila, mas dava para ver se que ela estava se esforçando para não surtar também.

Kaboom.

Outra explosão! Um carro estacionado a nossa direita explodiu graças a outro raio da serpente. Para nossa sorte ela era muito ruim de mira. Ainda bem que não havia ninguém lá dentro. Enquanto isso terminamos de descer a minha rua e o senhor pisava fundo acelerando mais e quando fez a curva para entrar na transversal outro raio passou bem rente. O carro balançou bruscamente, felizmente todos estavam com o cinto, contudo eu fui para a frente e me segurei para não bater a cabeça. O senhor quase perdeu o controle. O carro balançava e já estava prestes a bater.

O motorista do outro veículo falou um palavrão e furamos um sinal vermelho. Pude ver o veículo inteiro se iluminar de vermelho! Todos gritamos e o vidro da janela do carona estourou! Uma chuva de estilhaços nos inundou. O retrovisor da frente fumegava. Era outro raio que nos atingira. Fiquei feliz em saber que todos ainda estavam bem, mas a menina da frente teve um corte fino na testa.

— Alanis você está bem!? Estão todos bem!? — Perguntou o senhor.

— Estou pai. — Respondeu Alanis ainda tentando não esboçar seu medo.

O médico estava tenso, mas em silêncio e minha mãe ainda desmaiada.

Gritei:

— Estou bem, mas não sei até quando!

Olhei para trás e a serpente ainda estava em nosso encalço flutuando pelo ar! Cara não é possível que mais ninguém estivesse vendo aquilo. Rangi os dentes. Olhei para minha mãe e ela ainda estava inconsciente, mas agora começava a suar frio!

— Caramba velho temos que acabar com aquela coisa lá atrás! — Falei indignada com toda aquela situação. Droga eu estava impotente! Queria fazer algo, mas o quê? Estava ficando agora mais furiosa do que nunca.

— Senhorita O’Brien se acalme. Não queremos que o carro pegue fogo. — Respondeu o senhor.

Como ele sabia o meu nome? E que história era aquela de pegar fogo? Minhas mãos! Raiva era um gatilho para fazerem elas pegarem fogo? Aquilo me assustou de verdade. Queria obriga-lo a me contar o que sabia, mas confesso que fiquei com medo de me irritar mais e causar uma tragédia. Me contive e o senhor continuou:

— Alanis seja lá o que é aquilo você pode tentar parar com suas rajadas de vento. Perdoe-me se estou pedindo muito, mas você foi treinada e tem experiência, sei que pode fazer isso. Use sua cinese.

A garota fechou os olhos parecendo se concentrar e quando abriu eles o ar começou a rodopiar envolta de suas mãos! Era transparente, uma força elementar que normalmente não podia ser vista, mas estava ali. Rodopiava e fazia um som de assopro. Só podia ser o ar tomando uma forma mais consistente.

Ela pôs a cabeça para fora da janela mãos agora emitindo fortes rajadas de vento e com o braço direito lançou uma espécie de lâmina de vento na direção da serpente. Ela foi atingida em cheio e começou a se dispersar, mas muito lentamente. O semblante da garota depois disso mudou para algo mais severo. Nessa hora um vendaval surgiu trazendo consigo muita poeira e fazendo um zummm.

Os cabelos castanhos dela corriam indistintos e disformes sobre o vendaval. Ela fechou os olhos ainda com a cabeça para fora do carro. Eu não conseguia enxergar direito pela poeira do vento mais vi claramente a serpente ser atingida novamente, mas dessa vez se dissipando por completo com o impacto do golpe.

O vendaval então passou e a menina pôs a cabeça e o braço novamente dentro do veículo, abriu os olhos e começou a respirar ofegante. Não sei como ela fez aquilo, mas parecia cansada. Era obvio que a manipulação do ar ou vento, sei lá, havia esgotado ela. Olhei novamente para trás e vi o homem encapuzado no meio da rua. Um carro passou direto por ele, mas não o atropelou. Simplesmente o atravessou e sua forma tremeluziu. Como se o homem não fosse feito de carne e osso.

— Tenha medo, Victória.

A voz dele entrou novamente em minha cabeça e um arrepio percorreu minha espinha.

— Obrigado, Alanis. Você salvou a todos hoje. — Disse o senhor.

Ninguém havia ouvido a voz gélida do homem encapuzado. Pelo visto só eu. Bizarro.

A garota ainda com os olhos fechados ergueu o polegar direito fazendo o clássico símbolo do joinha.

Paramos em frente a uma casa bem grande de madeira com dois andares. Era madrugada por volta das três da manhã. Podia vera hora, pois passamos perto de um daqueles relógios digitais que ficam nas ruas. Não conhecia aquele bairro, mas o senhor disse: “Chegamos! Humaitá”! Paramos em frente a um portão gradeado branco. Era automático e se abriu com um gesto do motorista.

Adentramos a uma casa de dois andares verde, adornada com pedras na fachada. As janelas eram brancas e a garagem espaçosa. Havia um coqueiro na frente bem como um piso que não era azulejado. A área era ajardinada com pedriscos cinzas com um belo caminho de tanchões brancos. Ladeado por plantas e muitas lascas de madeira dando um toque ainda mais encantador naquela residência requintada de ar chique e majestoso. Pude avistar também um grande carvalho ao fundo. Além de um grande silêncio que cobria a madruga sinistra que eu estava vivendo.

O senhor correu e acendeu as luzes após abrir a porta apressadamente. Ele levou todos para dentro e subimos para o segundo andar, menos Alanis que ficou embaixo na sala. Um cômodo grande e espaçoso com uma televisão enorme de grande (4K), um sofá cinza retrátil e reclinável além de um belo tapete bege que parecia ser importado. No teto um lustre belo de cristal e abaixo todo o tipo de eletrônicos modernos: som de última geração, home theater com 7.1 canais de áudio, bluray dentre outros que eu nunca tinha visto. Tudo isso em uma grande estante marrom para tevê.

Notei uma mesinha de centro com enfeites que pareciam ser caros. Um criado mudo de mármore negro no lado direito. Havia também uma enorme mesa provençal que ficava ao lado esquerdo com um jogo de cadeiras vintage que apesar de destoarem da sala high-tech traziam também um certo charme ao ambiente. As paredes eram brancas e a escada em que subimos também. Esta situada perto da mesa antiga.

Ao chegarmos no segundo andar o médico acendeu os outros interruptores desse nível e entramos em um quarto com uma bela porta de madeira e com uma maçaneta prateada. Ele deitou minha mãe em uma cama em um dos cinco quartos daquele andar (sim eu contei haviam mais quartos). O médico começou a examiná-la. Eu estava com eles no quarto neste momento. Era um grande cômodo com uma cama de solteiro, uma televisão e uma ampla janela que dava para um jardim. Não aguentei e disparei:

— O que está acontecendo?! Não é melhor levarmos ela a um hospital!? — Eu disse consternada.

— Senhorita O’Brien não temos tempo para levá-la a um hospital. Além do mais o estado de sua mãe está além dos conhecimentos da Ciência Médica convencional. — Respondeu o senhor com pesar. Ele parecia estar realmente preocupado, contudo eu estava muito nervosa e continuei ríspida:

— Tu tá de sacanagem?! O que está acontecendo aqui! Quem era aquele homem de capuz?! Por que ele atacaria minha mãe!? Justo minha mãe! — Gritei e ela acordou. Ela estava muito pálida. A ferida… estava estranha. Não parecia ser algo normal. Ela começou a falar:

— Filha eu não queria que você descobrisse dessa forma.

— Mãe pare não diga nada não se esforce. —Pequei na mão dela com os olhos marejados. A mão estava fria. Isso me preocupou, ela me olhou com um sorriso fraco e continuou:

— Este é o senhor Apolônio. Um velho amigo da mamãe ele vai cuidar de você agora. Eu já havia providenciado todos os papéis. Ele é seu guardião legal. Eu já suspeitava que isso iria acontecer. Prometa que vai obedecê-lo, por favor. — A voz dela estava ficando mais fraca.

— Mãe que história é essa? — Eu estava consternada não podia aceitar aquilo! Ela estava mesmo… morrendo na minha frente?

— Só prometa filha. Deixe que eu vá em paz sabendo que você vai ficar bem.

Se tinha uma coisa que eu tinha era teimosia. Queria discutir o assunto, bater o pé dizer que não, todavia não podia fazer isso naquela hora. Não ao ver minha mãe naquele estado. Não entendia o que estava acontecendo. O porquê daquelas criaturas terem atacado minha casa, mas entendi que o senhor de meia idade era de fato um conhecido de minha mãe.

Olhei para ele e vi que já estava chorando. Céus aquilo não parecia ser verdade. Era cruel demais. Por fim disse:

— Eu prometo mãe.

— Obrigada.

— Melissa eu cuidarei de sua filha como se fosse minha. — As lágrimas emergiam agora dos olhos do Seu Apolônio e lhe percorriam a face. Era possível ver que ele trazia consigo uma grande dor. Minha mãe falou:

— Eu sei. É por isso que pedi para você fazer isso. Victória, escute. — Ela quis falar, mas dava para ver que isso já era um grande esforço. Me vi naquele momento também em lágrimas queria dizer para ela não me deixar, contudo me faltaram palavras e em um soluço disse:

— Mãe…

A palavra mais bela neste mundo mãe.

— Esqueça a dor para que o amor possa lhe guiar.

Ela então perdera a consciência e eu pensei que ela se fora de verdade. Sua mão já não me apertava. Era apenas eu que a segurava. Olhei com ódio para o Seu Apolônio e disse:

— É tudo culpa sua! Por que não a salvou? Que droga está acontecendo aqui?

Nessa hora o Homem do Capuz Negro apareceu no lado de fora da janela! Ele estourou o vidro dela e com um soco se jogou para dentro! O terror se apossou de mim novamente, pois o homem estava agora ali ao nosso lado estrangulando minha mãe!

Quando tentei socar ele vi algo ainda mais bizarro. O homem agarrou os braços da minha mãe e começou a se contorcer.

— O que está acontecendo!? — Perguntou o senhor alarmado. Ele estava em choque e a minha reação não era diferente salvo pelo detalhe que eu comecei a esmurrar o homem encapuzado dizendo “larga ela”. Minha mãe acordou assustada e começou a gritar e a cena só piorava, pois parecia que o cara estava convulsionando.

Só que ele começou a falar em um idioma que eu não entendia. Logo em seguida chamas surgiram em suas órbitas e estas começaram a acender e se projetaram para fora. Voaram em direção a minha mãe e queimaram o braço dela. A medida que elas saiam o corpo do homem murchava. O homem caiu no chão como se fosse leve como uma pluma. Eu gritei porque ali onde há poucos segundos havia um homem só restava o seu manto e uma ossada descarnada.

Minha mãe desmaiou.

Minhas mãos se acenderam e tudo o que eu vi em seguida foi o fogo.

— Senhorita se acalme eu preciso examiná-la. — Disse o homem calvo.

— Vai dar tudo certo. — Seu Apolônio disse. Victória se acalme.

Sua voz estava distante. Minha visão perdeu o foco. Eu ouvia gritos e o crepitar do fogo. As chamas lambiam o quarto. Ainda conseguia me ouvir dizendo “não cheguem perto de mim”. Que tipo de monstro havia entrando em minha mãe? Que tipo de monstro eu era? Como pudera começar outro incêndio? Sinto que explodi, pois, após ser açoitada com perguntas tão sinistras eu perdi a consciência.

Ao recobrar os sentidos me vi em um grande quarto. Deitada em uma cama box king size que estava disposta na parede. Era um cômodo bem arejado com um criado mudo branco a minha esquerda e ao seu lado um tapete que se estendia até uma varanda. Tinha ainda uma tevê preta de cinquenta polegadas 4K, uma escrivaninha com um computador, uma cadeira de escritório e uma estante cheia de livros. O quarto tinha um banheiro que estava com a porta de madeira aberta. Notei que ele era bem legal estilo aqueles que a gente vê nas revistas.

No canto na parede branca em cima da televisão havia um relógio que marcava dez horas. O cheiro de orvalho adentrava ao recinto e notei a varanda que estava aberta. Haviam várias gotículas de chuva nas folhas das árvores do outro lado da rua. Deve ter chovido de madrugada enquanto eu dormia. Olhei para as portas abertas e vi que era de manhã. Caminhei até a varanda torcendo para que tudo não passasse de um terrível pesadelo.

Não era.

Da varanda podia ver a rua e outras casas que ficavam de frete para a que eu estava. Pessoas caminhavam naquele momento despreocupadas. Era uma rua residencial e não avistei nenhum comércio. A manhã de sábado era fria, o tempo nublado. Olhei para o carvalho da outra noite e um vento frio soprou balançando suas folhas e os fios de meus cabelos. Quando me virei já com o coração apertado querendo ir em busca de respostas a porta do quarto se abriu e Seu Apolônio entrou com uma bandeja.

Nela tinha torradas com cream cheese, um prato com pães de queijo, uma fatia de bolo, compota, biscoitos cream cracker e um copo de suco de laranja. A bandeja era de prata e estava enfeitada com crisântemos vermelhos – minhas flores favoritas.

— Deve estar com fome. Trouxe também crisântemos sua mãe me disse há muito tempo que eram os seus favoritos.

— Escute velho não tô afim de mais, mais, mais. Dá para dizer logo o que tá rolando? O que aconteceu ontem? Como está minha mãe? — Minha mente trouxe de volta os horrores que eu vivenciei e isso só me deixou mais angustiada. Sem falar que estava preocupada em ter provocado um incêndio. Pensava se tinha machucado alguém, mas não toquei nesse assunto, por enquanto.

— Você é bem direta. Bem eu lhe devo respostas, mas antes de mais nada preciso lhe pedir que se sente.

— Estou muito bem em pé.

— Está bem. — Ele colocou a bandeja no criado mudo e veio até a varanda.

— Há muito tempo. – Ele começou – sua mãe e eu éramos amigos no ensino médio. Ela tinha um talento único. Ela era uma paranormal. Tinha visões do futuro. Eu também tinha habilidades únicas. Pessoas como nós são chamadas de sensitivos ou paranormais por que temos habilidades especiais. Eu tinha um professor que me ajudou a trilhar esse caminho e me desenvolver. Eu apresentei ele a sua mãe e juntos desenvolvemos nossas habilidades.

Logo depois ela conheceu seu pai que também tinha poderes paranormais. Ele era um pyrocinético podia produzir e manipular o fogo. Você Victória Del Valle O’Brien tem o poder de ambos. Sua mãe já sabia disso, mas nunca lhe contou, pois tinha medo. Não sabia como você iria reagir a tudo isso. Ela mesma nunca gostou muito disto apesar do fascínio que sentia no início de seu treinamento. Logo algo de ruim aconteceu e a fez largar tudo. Ela começou a achar as cineses perigosas demais. Cineses são poderes psíquicos alimentados pela Psi uma forma de bioenergia. A força psíquica da vida. Ela é aprendida e ensinada como uma das principais matérias da Psiônica. Esta por sua vez é o estudo do uso da mente para produção de efeitos paranormais.

Perdi o contato com sua mãe logo assim que seu pai faleceu há catorze anos atrás. Há algum tempo sua mãe me achou. Acho que foi pesquisando na internet, mas isso não vem ao caso. O fato é: ela me disse que tinha tido uma visão em que algo ruim acontecia com ela. Temendo por sua segurança ela me nomeou seu guardião legal. Ela planejava contar tudo a você com calma, mas não teve tempo.

Seu Apolônio terminou sua história indo até a escrivaninha e pegando uma pasta. Voltou até mim me mostrando alguns papeis que ele tirara delicadamente da pastinha. Eu li e de fato estava tudo lá: os documentos que atestavam que ele seria meu guardião legal caso algo acontece a minha mãe. Um tutor nomeado por ela mesma em um testamento. Nele ainda dizia que minha mãe tinha uma pequena poupança agora também ficando sob a responsabilidade do homem. Uma quantia não muito alta e nada demais, mas que me surpreendeu pelo fato dela economizar e nunca ter me falado nada disso. Tudo carimbado, assinado e com firma reconhecida em cartório.

Fiquei perplexa. Era mesmo tudo verdade mais aquilo de “poderes” e paranormalidade era fantasioso demais. Falei para ele:

— Tu tá de sacanagem? Ok! Minha mãe foi atacada e o senhor é meu responsável, mas… sem essa que eu vou acreditar nessa de “poderes psíquicos”!

— Fomos perseguidos ontem por uma serpente de fumaça.

Era verdade. Serpente, monstros e uma série de esquisitices.

— É isso que eu sou? Uma paranormal? Por isso minhas mãos pegam fogo?

Era ainda mais coisa para assimilar de uma só vez. O ataque que minha mãe sofrera ainda doía demais. E agora isso?

— Eu não sou uma paranormal! Você faz até soar como se eu fosse uma espécie de heroína com poderes mágicos e tudo mais! Você deve estar lendo shoujo demais cara! Mas saiba: eu sou uma adolescente normal que detesta a escola e odeia as aulas de matemática! Só isso!

— Meu anjo você sabe em seu íntimo que falo a verdade. Pode sentir isso. — Ele estava certo independente do que eu sentia o fato era que minhas mãos pegaram fogo! Contudo a pergunta de um milhão de dólares era outra:

— Quem fez aquilo com minha mãe? Que visão foi essa que ela teve? — Indaguei.

— Lamento, Victória. Eu sei tanto quanto você. Que sua mãe teve uma visão e que aquelas criaturas lhes atacaram. Presumo que sejam espíritos. Veja as vezes eles escapam do mundo espiritual e vem açoitar os vivos, entretanto nem todos são maus. Na maioria das vezes só estão perdidos, no entanto, nas últimas semanas tenho notado um aumento crescente na atividade deles.

— Peraí! Quer dizer que além de sermos especiais e termos poderes ainda temos que lidar com fantasmas?

— Victória todos somos especiais. O caso é que algumas pessoas apresentam uma afinidade maior com a Psi.

— O que é Psi?

— Victória eu já lhe disse Psi é a força psíquica que alimenta nossos poderes. Ela representa a força da vida do planeta. O “espírito” do planeta por assim dizer. Tudo o que tem vida tem Psi. Psi é como a força da gravidade, por exemplo. Você não a vê, entretanto ela está aqui. A Psi nos permite usar nossas cineses. Cinese é movimento. Força em movimento, Psi em movimento. Há muito tempo existia uma única cinese. A Telecinese e com o passar das eras ela se ramificou em sete cineses:

Aerocinese: o poder do ar.

Biocinese: o poder da vida.

Criocinese: o poder do gelo.

Electrocinese: o poder da eletricidade.

Geocinese: o poder da terra.

Hidrocinese: o poder da água.

E a Pyrocinese o poder do fogo. Cada ser humano só tem uma cinese, contudo quanto mais ele desenvolvê-la mais forte ele fica ao ponto que seu sexto sentido desperta e a pessoa desenvolve uma percepção extra-sensorial como a clarividência.

— Eu tive um pressentimento ontem à tarde que a minha mãe estava com problemas. De início, pensei que fosse por conta do tiroteio em nossa comunidade, mas agora vejo que estava pressentindo… que isso tudo aconteceria com ela.

Deus, agora tudo fazia sentido: eu era mesmo uma sensitiva, uma paranormal.

— Victória, você é única. Conseguiu manifestar uma onda maçante de poder ontem sem nenhum treinamento. Sua cinese despertou bem como sua manifestação extra-sensorial, a clarividência, contudo você deve tomar cuidado. Você precisa de treino, mas não quero forçá-la a nada. A decisão deve vir de você.

O homem estendeu suas mãos em minha direção.

— Se você não quiser ser treinada pegue minha mão esquerda, mas se quiser pegue minha mão direita. Só um aviso: se quiser você vai embarcar em um novo mundo. Vivenciar coisas que nunca viu antes.

Suas palavras me assustaram. Olhei para seu rosto e vi uma expressão séria. O que eu faria? Era um dilema de fato. Ser ou não treinada? Embarcar no desconhecido ou permanecer em minha zona de conforto? Bem na verdade eu já sabia o que iria escolher. Eu queria ser treinada, aprender como controlar esse poder, as chamas. Queria dormir melhor. Ter paz. Penso que se fazer isso minha dor vai passar. E bem… desejava mais do que nunca me curar de tudo aquilo. Daquele trauma. Tirar todas aquelas lembranças ruins da minha cabeça. Tirar aquela dor do meu peito.

— Minha mãe disse para eu ser movida pelo amor – meus olhos se encheram de lágrimas. Não queria, mas estava chorando de novo. Continuei:

— Ainda não entendo o que ela quis dizer, mas quero ser treinada para poder usar esse conhecimento em meu benefício. Quero garantir que não vou mais sentir essa dor. Com seus conhecimentos talvez possa fazer isso. — Apertei a mão direita do senhor.

—Victória O’Brien querer ser treinada para usar esse conhecimento em seu benefício próprio não é algo bom. É egoísmo

— Quero acabar com as lembranças ruins. Com a dor que aperta meu peito. Ela é ruim demais. — Confessei e continuei:

— Se isso é egoísmo o que posso fazer?

— Entendo. Isso tudo é muito traumático. Ninguém tão jovem deveria passar por isso. – Ele suspirou profundamente e continuou: — Tudo bem. Agora prepare-se. Você vai ser treinada. — Ele me falou expressando uma grande preocupação.

Sofri, mas por mim mesma. Eu simplesmente ainda não conseguia acreditar que minha mãe fora atacada de forma tão macabra. Sentia sua falta! Era difícil. Nesse momento enquanto conversava com o velho uma grande mágoa surgiu em meu interior. Devo ter demonstrado isso, pois Seu Apolônio perguntou:

— Tudo bem Victória? Eu não quis assusta-la é só que daqui para frente muitas coisas vão acontecer. Você está realmente certa de que quer treinar comigo?

Fiz que sim com a cabeça e falei:

— Minha vida até parece que se transformou em uma creepypasta! — Meus olhos ficaram marejados.

— Eu entendo.

— Como ela está? — Perguntei agora com mais angustia.

— O homem calvo de ontem, o doutor Igino Carminati, ele é médico e está cuidando de sua mãe. O estado dela é estável. Pressão, glicose, batimentos cardíacos, está tudo normal. Só que ela não acorda. É como se fosse um coma.

— Como assim?! Ela tem que ir a um hospital! — Falei com raiva.

— Victória ela já está em um. No hospital em que o doutor trabalha. Levamos ela mais cedo. Achei que ontem à noite poderíamos tentar ajudar ela aqui em casa, entretanto não conseguimos. Nem mesmo o doutor Carminati conseguiu. Ele também é um paranormal. Um estudioso da escola da Cura. Assim acabamos levando-a para um hospital comum para tentar achar a causa desse “coma”. Eles simplesmente não encontram nenhuma doença. Contudo tenho fé que que o doutor vai encontrar uma forma dela melhorar. É só uma questão de tempo. Podemos vê-la mais tarde no horário de visitas. Quanto a criatura estou pesquisando também. Isso pode ajudar a saber que tipo de entidade maléfica enfrentamos ontem e “como “e “porquê” ela fez isso a sua mãe. Quanto a ossada o Doutor também vai examiná-la.

— Isso é péssimo! Escute ontem à noite houve mais… você sabe se eu… machuquei alguém?

— Nós conseguimos apagar o fogo. Ninguém se feriu.

Um grande silêncio surgiu naquele momento. Ele só me observava como se quisesse poder fazer mais para que eu me sentisse bem. No fim ele já estava fazendo mais do qualquer um. Queria dizer isso a ele, contudo não podia falar nada. Minha voz havia sumido… eu estava chorando de novo! Droga! Não queria fazer isso na frente dele. Na frente de ninguém. Afastei as lágrimas que surgiram sem ser convidadas e disse:

— Pode ir agora eu estou bem.

— Victória, escute não há problemas em chorar. Pode se abrir comigo.

— Você é bem fofo, sério, mas eu preciso de espaço. Preciso ficar sozinha um pouco.

— Tudo bem. Veja este quarto é seu. Se quiser pode usar as roupas da Alanis. Vocês têm a mesma idade e o mesmo tamanho. Elas vão servir. Peço que me perdoe mais não tive tempo de comprar nada para você, contudo podemos depois ir a um Shopping e…

— Eu sei — Interrompi ele. — Podemos comprar roupas novas, pois eu pus fogo nas minhas lá na minha casa, tá certo.

Ele olhou para mim novamente com um olhar triste como se estivesse condoído para comigo.

— Eu estou bem obrigada.

Respondi e ele saiu dizendo que qualquer coisa era só chamá-lo. Foi isso. Ele saiu e eu comecei a chorar. Tudo me lembrava ela! Eu não aceitava! Não aceitava aquilo! Fiquei furiosa comigo mesma, com os monstros e com tudo! Comecei a socar o travesseiro. Soquei, soquei e soquei até ele arrebentar.

Penas voavam e lágrimas caiam na medida em que eu continuava batendo e chorando. Bradei um grande por quê?! Não percebi, mas em minha fúria acabei atirando a bandeja de prata pelos ares. A comida e bebida se espalharam no chão. Olhei para meu reflexo na bandeja e me assustei comigo mesma. Meu semblante era de puro ódio, rosto vermelho e narinas tremendo. Temia romper em chamas novamente. Temia ser quem eu era: um monstro! Mãe… queria poder voltar no tempo e ter te salvado. Parei de quebrar tudo. Procurei me controlar, mas já estava soluçando de tanto chorar. Sentei no chão e abracei meus joelhos. De cabeça baixa continuei chorando.

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