ghbjksdghjksd 1 1024x613 - Victória O’Brien e o Saltério dos Mortos – Cap. 6

04/04/2021

Capítulo seis

A visão

Notei algumas folhas caídas secas no chão. Mortas ali próximas a mim muitas já amareladas mostrando que o outono já estava praticamente chegado, apesar de faltar algumas horas. A mudança das estações refletia o girar da roda da vida como incansável a rodar e trazer consigo a vida, morte, alegria e tristeza. Bem como coragem e medo. Este último estava ali na minha frente se fazendo presente ante a minha pessoa. Refletido nos olhares que me cercavam.

Não pude mais ficar apenas olhando e perguntei:

— O que foi gente? Por que estão todos assim com essas caras? Quem é o Homem Mariposa?

— Victória, ele é um ser único do Mundo Espiritual. Toda vez que ele aparece é para anunciar grandes tragédias. — Disse Seu Apolônio e Alanis completou:

— Normalmente sua presença é tida como um mal agouro. Quando ele surge coisas são destruídas e pessoas… perdem suas vidas.

— Minha casa pegou fogo e minha mãe entrou em coma. Será que não era isso que o Homem Mariposa quis anunciar?

— Talvez, mas isso é no mínimo preocupante, Victória. — Disse Seu Apolônio.

Mais essa agora. Será que algo ainda pior poderia acontecer? Fiquei perplexa. Não podia imaginar o que mais poderia dar errado. Já era ruim o suficiente não ter nenhuma pista dos algozes de minha mãe e agora isso. Um mal presságio.

A noite jantamos fricassê de bacalhau e salada de agrião. De sobremesa sorvete de pistache. Até que estava bom apesar de eu preferir carne. Bernardo se despediu de nós depois de filar a boia e foi para casa. Alanis foi para o seu quarto e Seu Apolônio estava no seu escritório quando eu entrei. Ele usava uma camisa polo verde escuro e uma calça de brim. Perguntei se ele havia feito algum progresso em achar os meus perseguidores.

O escritório tinha uma grande mesa de mogno daquelas que você encontra em um antiquário e uma estante gigante cheia de livros. Cadeiras e um sofá bem confortável. Na parede havia um machado medieval de prata decorativo bem bonito com um leão encrustado no cabo ajaezado de rubis e safiras. Na mesa um notebook, material de papelaria e uma xícara com café. Imagino se o velho homem ficava ali vendo GIFs engraçados ou vídeos de gatos fazendo brincadeiras na internet quando não tinha nada para fazer.

— Alguma novidade? — Havia tristeza em minha voz. Ainda estava com aquela visão do ser sobrenatural, o Homem Mariposa, em minha cabeça. Não tinha como não me lembrar dele depois daquelas caras que o povo fez mais cedo.

— Na verdade, sim. Antes, entretanto devo me desculpar. Não queria te deixar tensa hoje de tarde, mas é que o Homem Mariposa pode mexer com qualquer um. Vê-lo geralmente é um prelúdio para o caos. Eu não poderia esconder isso de você.

— Relaxa me conte logo o que descobriu.

— Sempre direta. Tudo bem as criaturas tinham uma marca na testa. Você se lembra?

— Uma serpente envolvendo um triângulo. Não poderia esquecer.

— Isso mesmo. O triângulo era o símbolo da escola de Jean Fradique. Ele representava as três casas unidas. A serpente envolvendo o triângulo… acredito que seja uma pista embora não tenha mais nada de concreto. Devo pesquisar mais em meus livros ou mesmo falar com algum simbologista.

— Isso quer dizer o quê? Que após todo esse tempo o senhor só conseguiu achar uma relação com uma universidade que não existe mais? — Fiquei atônita. Não sabia o que pensar.

— Victória, veja bem eu sei que de fato é pouco, mas é tudo o que eu tenho no momento. No mais o símbolo da universidade extinta talvez não queira dizer nada, contudo é no mínimo intrigante. Eu preciso de mais tempo para conduzir essa pesquisa.

— Não me faça esperar demais, por favor, eu preciso de respostas! — Agora meus olhos estavam marejados.

Seu Apolônio se levantou e me abraçou bem forte e eu me senti mais segura. Depois ele caminhou até sua mesa e abriu uma gaveta. Tirou dela um cordão de ouro com um pingente em forma de asa. Ele disse:

— Meu pai me deu isso quando eu tinha a sua idade. Agora eu lhe dou. — Fiquei surpresa com o presente, mas sabia que não poderia aceitar:

— Nossa… obrigada, mas eu não posso ficar com isso. Pelo visto é um bem de família.

— Victória, você é da família agora. É minha filha. — Puxa ele sabia como fazer uma garota se emocionar de verdade. Eu já imaginava que ele me via assim, mas ouvi-lo dizer isso de novo me fez chorar. Droga não gostava de chorar na frente de ninguém, mas não tive como deter aquelas lágrimas. Aceitei o presente e o abracei. Ele também tinha lágrimas nos olhos.

Eu estava dormindo enrolada em uma grande coberta. Usava um baby doll branco. A noite estava fria apesar de estarmos ainda no verão. Se bem que o outono começaria nessa madrugada. Já esse frio acho que também era porquê o Humaitá é um bairro bem arborizado e fica perto da Lagoa. Eu até que já conseguia dormir um pouco melhor. Revivi novamente o que aconteceu na noite do ataque, mas dessa vez só vi aqueles olhos… chamas vermelhas.

Não acordei. Os olhos sumiram rapidamente e depois disso só havia escuridão. Eu estava tendo uma noite sem sonhos. Se ela continuasse assim eu não me importaria, porém como alegria de pobre dura pouco eu acabei acordando com um chamado.

Eu estava gelada. Ouvi – não sei como, pois, tenho um sono bem pesado – uma voz feminina me chamar lá de fora. Olhei para o relógio na parede e mesmo no escuro pude ver que eram três da manhã.

Quem poderia estar me chamando a uma hora dessas? Olhei para a janela que estava fechada e pensei em não levantar, contudo ouvi de novo “Victória”. Levantei e fui ver quem era. O quarto estava escuro. Caminhei às cegas até a janela e ao abri-la um vento frio soprou fazendo meus cabelos se esvoaçarem com ele. A lua estava crescente e o céu completamente negro sem estrelas.

Embaixo do carvalho eu via uma jovem mulher de cabelos negros, com um vestido amaranto e uma capa cinza com um capuz. Sua pele era pálida e os olhos eram carmesins. Grandes e intensos pareciam conter dentro deles uma tristeza lúgubre. A jovem era bela como uma estrela e misteriosa como a noite.

O mais estranho é que ela flutuava poucos metros acima do chão e envolta dela havia uma névoa branca. Nossa me espantei de verdade. Gelei dessa vez, mas não pelo frio. Essa mulher estava morta! Era um espírito! Do contrário como poderia flutuar?! Ela então gemeu e começou a lançar no ar da noite fria um choro triste.

Um lamento profundo e fúnebre. Sua voz era doce e fina ao mesmo tempo e logo ela começou a cantarolar uma melodia muito mais triste que seu choro. Com lágrimas a correr de sua face ela aumentou o tom da sua voz cantando uma oitava acima. Os vidros da janela estouraram! Fechei os olhos e protegi meu rosto com meus braços.

Caí para traz com o impacto do estouro. Levantei com cuidado com cacos de vidro ao meu redor. Felizmente não me cortei e ao olhar novamente para a janela a mulher havia desaparecido. Foi aí que vi uma monstruosidade saindo da estufa – agora com os vidros quebrados – mancando. Era uma criatura horrenda com a aparência de uma mulher, mas seu rosto era desfigurado.

Ela não tinha lábios e os dentes estavam a mostra. Uma seiva verde-escura saía de sua boca como se fosse uma baba gosmenta. Só tinha um olho, castanho no lado esquerdo do rosto. No lado direito uma espécie de tronco de árvore se mostrava exposto. O cabelo era preto, mas bem ralo.

A pele era roxa. Seus braços descarnados, e o direito parecia ser feito de madeira podre com vermes rastejando de buracos neles. As pernas igualmente magras e os dedos dos pés tinham unhas grandes e negras. A coisa usava uma camisa de manga cumprida branca, mas velha e amarelada rasgada na barriga e mangas; A calça era preta, mas desbotada quase cinza.

Caminhava em direção a merleta que continuava voando e iluminando os fundos da casa como um poste de luz. Céus e agora? A coisa iria acabar com a raça do passarinho brilhante. Não podia deixar! Eu podia ser egoísta com humanos, mas não com animais. Gritei:

— O coisa feia! Você está indo para onde? Deveria ir procurar um salão de beleza ao invés de andar na direção de passarinhos!

A criatura se virou e olhou para mim com aquele único olho. Tinha raiva naquele olhar eu podia ver claramente isso. Eu consegui chamar a atenção dela. Nesse instante emergiu do braço direito da criatura um grande espinho. Ele era pegajoso e coberto pela mesma seiva que saia da boca da coisa. Ela apontou o braço em minha direção e disparou!

Me abaixei e o troço passou zunindo por minha cabeça dando um grande rasante. Ele ficou preso no teto gotejando a seiva verde no piso! Enquanto eu olhava assustada para aquilo senti um bafo quente e fétido em minha nuca. Olhei alarmada para trás e a coisa estava na janela! Começou a entrar desengonçada para dentro do quarto dando dentadas no ar!

Não hesitei! Sabia que tinha de fazer algo ou seria devorada. Acendi minhas mãos e para minha sorte consegui de primeira! Fiz uma bola de fogo que iluminou o quarto escuro e ao olhar para o monstro vi que sua cara ficava ainda mais aterradora na luz do fogo. A criatura finalmente entrou e caiu desengonçada no chão. Dei um paço para trás e pisei em um caco de vidro. Doeu! Falei um palavrão e atirei a bola de fogo bem no rosto do monstro.

A criatura se debateu agitando os braços e soltando um grito de dor medonho. Tropeçou nas próprias pernas e caiu da janela. Olhei para baixo e vi que ela não se mexia mais. Apenas o fogo crepitava nela até que o mesmo se apagou e a criatura começou a murchar como uma planta morta.

— Bem feito! Da próxima vez não tente me atacar! Siga o meu conselho e vá procurar um salão de beleza! Aproveite e escove os dentes! Nossa que bafo!

A porta do quarto abriu logo em seguida com um estrondo! Alanis com o extintor em mãos e Seu Apolônio alarmado.

— O extintor de novo, Alanis?

— Fred precisava vir. Quando você está envolvida sempre há fogo.

— Deu mesmo um nome para o extintor?

— Alanis, por favor, Victória não é nenhuma incendiária. — Ele disse olhando para Alanis e depois se virou para mim e continuou:

— Victória eu pedi para que ela trouxe-se o extintor. Fiquei com receio de que o quarto estivesse para pegar fogo… de novo. Os vidros da casa explodiram você está bem?

— Estou só cortei a sola do pé. Aquela coisa quase me devorou viva! O que que é isso? Minha vida agora virou um filme de mortos vivos? O que o senhor guardava naquela estufa?!

Seu Apolônio ficou alarmado. Olhou para baixo e viu aquela coisa murcha que há alguns segundos fora um monstro.

— Victória, me desculpe.

Ele fez um curativo no meu corte. Seu Apolônio contou:

— Aquela era uma mandrágora. Uma planta mística usada em medicina paranormal, o pai de Paola usava algumas de suas raízes para criar compostos poderosos no trato de vários tipos de enfermidades. Contudo ela é muito perigosa. Por isso proibi você e Alanis de se aproximarem da estufa. Eu a guardava lá.

— Entendi a plantinha homicida é boa para a medicina. Você só tem que tomar cuidado para ela não te matar.

— Ela fugiu, pois, os vidros da estufa estouraram, mas eles eram reforçados e a prova de balas. Como eles puderam explodir?

Contei sobre a mulher que me visitou e Seu Apolônio me ouviu muito sério. Alanis também estava séria. Eu pensei que ela iria fazer alguma colocação bem irritante ou mesmo fazer pouco caso de mim, mas ela nada disse.

— Victória, você viu uma Banshee. Ela é um espírito que traz maus agouros, porém só para membros de algumas famílias da Irlanda.

— O quê? O senhor está dizendo que eu herdei um “espírito” que traz mensagens ruins?

— Bem… sim. Algumas famílias irlandesas como os O’Briens, os O’Connors, os O’Gradys e também os O’Neills dentre outras famílias trazem consigo espíritos que transmitem sinais de que coisas ruins irão acontecer.

— Homem Mariposa, Banshee tudo isso quer dizer que algo muito sério vai acontecer? Só chegam emissários de coisas ruins! Daqui a pouco vai aparecer o leão do imposto de renda dizendo que eu tenho que pagar impostos! Por que eu não acho um leprechaun dizendo que eu vou ter boa sorte ou ficar rica!?

— Victória, eu não sei a razão de tudo isso, mas não se preocupe vamos descobrir.

Suas palavras não me tranquilizavam nem um pouco e eu podia sentir agora que algo realmente grave iria acontecer. Dor, sofrimento e angustias sem fim pareciam nos rodear enquanto eu olhava para ele e Alanis. De repente ouvi a voz de minha amiga Julia.

—Socorro!

Fiquei toda arrepiada. Não sei como mais eu estava vendo a minha amiga ser arrastada pelas pernas pelo… Homem do Capuz Negro! Ele estava arrastando ela por um corredor completamente escuro. A não ser por uma lâmpada presa no teto por um bando de fios expostos. Ela piscava alternando a luz no corredor ora acesa, ora apagada. As paredes tinham muitas infiltrações.

No teto teias de aranha pendiam soltas cheias de pequenos insetos presos nelas. Minha amiga gritava e chorava compulsivamente com o rosto já inchado e vermelho provavelmente de tanto chorar. Ela estava em pânico! No canto do corredor havia uma gaiola com um corvo morto e no chão uma serpente verde com a cabeça em ponta de flecha, olhos finos e escamas negras formando um intrincado padrão perpendicular. Olhei em volta e vi outros pássaros mortos e descarnados, e em uma parede o símbolo da serpente mordendo a própria calda envolvendo um triângulo.

Foto: Pixabay.